FARINHA DE SOJA À BASE DE OKARA, TEMPERADA E IRRADIADA
Capítulo de livro publicado no livro do I Congresso Internacional em Ciências da Nutrição. Para acessa-lo clique aqui.
DOI: https://doi.org/10.53934/9786585062015-6
Este trabalho foi escrito por:
1Silvana Pedroso de Góes-Favoni https://orcid.org/assets/vectors/orcid.logo.icon.svg*; 2Ana Paula Nunes de Sá https://orcid.org/assets/vectors/orcid.logo.icon.svg; 1Cláudia Dorta https://orcid.org/0000-0003-2760-4229; 1Paulo Sérgio Marinelli https://orcid.org/0000-0002-0456-0465; 1Juliana Audi Giannoni https://orcid.org/0000-0002-5347-7545; 1Elke Shigematsu https://orcid.org/0000-0002-6789-6732; 3Valter Arthur https://orcid.org/0000-0003-3521-9136
1Fatec Marília; 2Tecnóloga em Alimentos; 3Centro de Energia Nuclear na Agricultura *Autor correspondente (Corresponding author) – Email: [email protected]
RESUMO
Okara constitui umaalternativa viável para produção de farinhas temperadas destacando-se o elevado teor de proteínas e seu sabor inerte. Contudo a contaminação microbiológica é um agravante na sua industrialização e comercialização. A irradiação é um método eficaz que impede a proliferação de micro-organismos estendendo a vida útil do produto. O presente trabalho teve como objetivo desenvolver farinha temperada à base de okara (FST), caracterizar química e sensorialmente o produto, além de analisar os efeitos da irradiação gama no controle dos micro-organismos e sua conservação. Grãos de soja foram submetidos a maceração, cocção, centrifugação e secagem para obtenção do okara, que em seguida foi adicionado de condimentos sob aquecimento controlado. A FST foi irradiada a 1 e 3 kGy com radioisótopo Cobalto60, analisada quanto a composição centesimal, presença de Salmonella spp, bolores, leveduras, coliformes totais, Esherichia coli, Bacillus cereus e avaliada sensorialmente por 60 provadores não treinados. As análises foram realizadas no 10 e no 450 dia de armazenamento. A FST apresentou 18,5 vezes mais proteínas que farinhas temperadas de mandioca, tradicionalmente consumidas no Brasil. A dose de 3 kGy inativou todos os micro-organismos presentes nas amostras e de acordo com os resultados da análise sensorial não houve diferença significativa entre as amostras avaliadas (controle e irradiadas), apresentando índice de aceitação dos atributos avaliados de 80%. Conclui-se assim que a FST é um produto com excelentes atributos nutricionais em relação as farinha comerciais bem como qualidade sensorial sendo viável a irradiação para controle microbiológico.
Palavras-chave: Farinha temperada. Soja.Okara. Irradiação. Conservação de alimentos.
ABSTRACT
Okara is a viable alternative for the production of seasoned soyflours highlighting the high content of proteins and their inert flavor. However, microbiological contamination is an aggravating factor in its industrialization and commercialization. The irradiation is an effective method that prevents the proliferation of microorganisms, extending the product’s useful life. The present work aimed to develop seasoned okara-based flour (FST), characterize the product chemically and sensorially, and analyze the effects of gamma irradiation on the control of microorganisms and their conservation. Soya beans were subjected to maceration, cooking, centrifugation and drying to obtain okara, and then condiments were added under controlled heating. FST was irradiated at 1 and 3 kGy with Cobalt-60 radioisotope, analyzed for centesimal composition, presence of Salmonella spp, molds, yeasts, total coliforms, Esherichia coli, Bacillus cereus and sensorially evaluated by 60 untrained tasters. Analyzes were performed on the 1st and 45th day of storage. FST presented 18.5 times more protein than seasoned cassava flour, traditionally consumed in Brazil. The dose of 3 kGy inactivated all microorganisms present in the samples and, according to the sensory analysis results, there was no significant difference between the evaluated samples (control and irradiated), presenting an acceptance index of 80% in the evaluated attributes. It is concluded that FST is a product with excellent nutritional attributes compared to commercial flour and has good sensory quality, being irradiation viable for microbiological control.
Keywords: Seasoned soy flour; Soy; Okara; Irradiation; Food preservation
INTRODUÇÃO
A soja e seus alimentos derivados são considerados funcionais por conter compostos que promovem benefícios à saúde dos consumidores. Considerada um alimento proteico, com cerca de 40% de proteínas com ótimo balanço aminoacídico, a leguminosa apresenta cerca de 20% de lipídeos, a maioria ácidos graxos poli-insaturados, além de compostos bioativos como isoflavonas, peptídeos, inibidores de proteases, oligossacarídeos entre outros, citados na literatura cientifica como compostos funcionais (1,2).
No Brasil, maior produtor mundial de soja, com a safra 2020-2021 estimada em 125,47 milhões de toneladas (3), a principal forma de consumo é o óleo extraído da leguminosa seguido dos derivados proteicos obtidos a partir do farelo desengordurado. O consumo direto do grão na alimentação do brasileiro é baixo, por não fazer parte dos hábitos alimentares, desconhecimento dos potenciais benefícios à saúde e por seu sabor característico (off flavours) com baixa aceitação no país (4). Entretanto, dados do Euromonitor International demonstram que o consumo de bebidas à base de soja, produzidas a partir do extrato de soja, popularmente chamado de “leite de soja”, tem crescido entre os brasileiros, com produção em 2017 de 135,8 milhões de litros (5).
Na obtenção do extrato de soja os grãos são imersos em água, macerados e filtrados havendo a geração de uma massa de sabor inerte, considerada um subproduto ou resíduo denominado okara, cujo valor nutritivo assemelha-se ao grão de soja (6). Na produção de tofu, conhecido como “queijo de soja”, produto típico da culinária oriental e muito difundido no ocidente, também se obtém o okara. Segundo Yoshida et al. (7) a partir de 1 Kg de grãos para obtenção de extrato aquoso, obtém-se 1,1 Kg de okara úmido.Devido à sua qualidade nutricional, o okara vem sendo empregado no enriquecimento de pães, hambúrgueres, biscoitos entre outros, porém sua comercialização para indústrias alimentícias não é uma realidade nacional, e acaba destinado quase que em sua totalidade à alimentação animal (7).
Por outro lado, farinhas temperadas também denominadas farofas são produtos industrializados de baixo custo, fácil elaboração e fazem parte do hábito alimentar dos brasileiros (8). Neste sentido, o okara constitui uma alternativa viável às farinhas temperadas convencionais (mandioca e milho), oferecendo qualidade nutricional significativamente maior, considerando que apresenta cerca de 36% de proteínas contra 2,1% na farinha temperada de mandioca e 6,9% na farinha de milho, assim como maior teor de fibras com aproximadamente 18% para o okara, 7,8% e 4,0% para farinhas de mandioca e milho, respectivamente (9).
Além da saúde e nutrição, produtores e consumidores cada vez mais preocupam-se com a segurança dos alimentos do ponto de vista microbiológico e físico-químico, com extensão da vida de prateleira de modo a permitir a expansão do comércio. Neste contexto a tecnologia de irradiação pode favorecer a segurança alimentar, pois é capaz de controlar o desenvolvimento microbiano e as reações enzimáticas, retardando a decomposição do alimento (10).
O presente trabalho teve por objetivo desenvolver farinha temperada à base de okara (FST), como forma de reaproveitar um subproduto do processamento da soja e analisar o efeito da irradiação gama como forma de conservação, caracterizando o produto final quanto à composição química, microbiológica e sensorial durante seu armazenamento.
Grãos de soja adquiridos em comércio da cidade de Marília-SP foram selecionados e submetidos à fervura em água na proporção 1:7 (soja: água) por cinco minutos, conforme metodologia descrita Viana et al. (11) com modificações. Em seguida, os grãos foram triturados com auxílio de liquidificador doméstico (Poli-skymsen60Hz) por três minutos em potência alta e novamente submetidos à cocção por dez minutos. O material obtido foi centrifugado em centrífuga doméstica (Fama) por 3 minutos em potência alta obtendo-se uma massa úmida de coloração branco amarelada – o okara. O okara úmido foi submetido a secagem em estufa de circulação de ar (Marconi mod. 035) à 65°C por 4 horas, conforme testes preliminares (dados não mostrados).
Elaboração da farinha de soja temperada (FST)
Na formulação da FST foram adicionados ao okara os condimentos desidratados cebola, alho, coloral, açafrão, orégano e sal, todos obtidos no comércio de Marília-SP. Após homogeneização, a mistura foi mantida em descanso por 1 hora. Em seguida o okara condimentado foi aquecido em fogo baixo (78°C ± 2,00C), com adição de gordura vegetal hidrogenada, salsinha desidratada, pimenta-do-reino e extrato de levedura, até o ponto de total incorporação dos ingredientes. Após resfriamento a temperatura ambiente, a FST foi acondicionada em sacos de polipropileno revestidos por papel alumínio, com 500 g cada.
A FST foi submetida à irradiação no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA), da Universidade de São Paulo em Piracicaba-SP. O irradiador utilizado foi o Gamma cell 200, com o radioisótopo Cobalto60, fabricado pela empresa Atomic Energy of Canada Limited. As amostras, em triplicata para cada tratamento, foram divididas em controle (não irradiada) e irradiadas a 1kGy e 3 kGy (irradiados com a taxa de 0,269/hs).
Foram determinados teores de umidade, cinzas, proteínas, lipídeos e carboidratos totais nas FST controle (não irradiada) e irradiadas a 1 kGy e 3 kGy, segundo metodologia do Instituto Adolfo Lutz (12), usando fator de correção do Nitrogênio de 6,25 para proteínas. O teor de carboidratos foi obtido através da diferença dos demais constituintes. Todos os resultados foram expressos em base seca.
Foram realizadas análises microbiológicas para determinação (presença/ausência), de Salmonella spp, bolores e leveduras, coliformes totais, Escherichia coli e Bacillus cereus conforme a legislação vigente recomendada para farinhas (13). As análises foram realizadas sob condições assépticas com diluições de 10-3 das amostras.
Na pesquisa de Salmonella sp, as amostras foram transferidas para dois diferentes caldos de enriquecimento: caldo Rapapport (RPP) e caldo Tetrationato (TT) e incubados a 35ºC por 24h. Cada amostra foi semeada em placas de Petri com Ágar Salmonella Shigella (SSA), Ágar Verde Brilhante (BG) e Ágar Xilose Lisina Desoxilato (XLD), e incubados a 35ºC/24h. As colônias com identificação presuntiva de Salmonella sp foram identificadas por provas bioquímicas convencionais. Para bolores e leveduras foi usado a semeadura em superfície no meio PDA e incubação a 28ºC por até 5 dias (14, com adaptações). Coliformes totais e Escherichia coli foram pesquisados através do plaqueamento da amostras diluídas em superfície em meio Chromocult (Merck) seguido pela incubação a 35ºC por 24 horas (15). Bacillus cereus foi investigado utilizando meio de cultura Agar Manitol Gema de ovo polimixina (MYP), seguindo a metodologia oficial descrito por Silva et al. (14).
O método sensorial empregado foi afetivo, sendo aplicado o teste de preferência utilizando escala hedônica estruturada de 9 pontos, onde 9 significa “Gostei muitíssimo” (pontuação máxima) e 1 “Desgostei muitíssimo” (pontuação mínima), avaliando cada amostra segundo os atributos cor, aroma, sabor, textura e aparência global. A equipe foi composta por 60 provadores não treinados.
Foram entregues aos julgadores as três amostras simultaneamente, devidamente codificadas com três dígitos, juntamente com água para limpeza das papilas gustativas entre as amostras. A análise sensorial foi realizada no primeiro dia de obtenção das amostras irradiadas e após 45 dias de armazenamento a temperatura ambiente.
Para o cálculo do Índice de Aceitabilidade foi adotado a expressão: IA (%) = (A x 100)/B, na qual, A = nota média obtida para o produto e B= nota máxima dada ao produto (16).
Análises estatísticas
Os resultados obtidos foram tratados estatisticamente pela análise de variância (ANOVA), que avaliou a existência ou não de diferença entre as amostras no nível de 5% de significância. Para verificar quais tratamentos diferiram entre si foi aplicado o teste de Tukey (17). A estatística foi realizada pelo programa estatístico BioEstat 5 (18).
Análises físicas e químicas das FST
Farinhas temperadas fazem parte da dieta dos brasileiros, sendo as mais consumidas as farinhas de milho e mandioca, fontes de calorias de baixo custo e baixa qualidade nutricional. Enquanto as farinhas de milho e mandioca apresentam baixo teor proteico, a FST elaborada a partir do okara apresentou em média, 5,5 vezes e 18,5 vezes mais proteínas que as farinhas de milho e mandioca comerciais, respectivamente (Tabela 1) (9).
Segundo Food and Drug Administration (19) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil, ANVISA (20) o consumo diário de 25g de proteínas de soja, quando associadas a dietas balanceadas, reduzem o colesterol total e o LDL colesterol, levando à diminuição dos riscos de doenças do coração. Assim, o consumo de 65 g da farinha temperada de soja à base de okara, pode atender às recomendações de ingestão preconizadas para proteína de soja na promoção da saúde.
A soja é reconhecida como oleaginosa em função do elevado teor de lipídeos que possui, com cerca de 20%, sendo em média 84% de ácidos graxos poli-insaturados (21). A quantidade de lipídeos encontrada na FST (29,9 g/100g) no entanto, foi superior aos teores observados no okara (14%, dados não mostrados) e nas farinhas de milho e mandioca (Tabela 1), provavelmente pela adição da gordura vegetal hidrogenada na formulação.
Além das proteínas e lipídeos, a FST possivelmente apresenta quantidades superiores de minerais em relação às farinhas comerciais uma vez que o okara contém cerca de 310 mg/100g de cálcio, 1090 mg/100g de potássio, 7,91 mg/100g de ferro, contra 1,7 mg/100g; 77,8 mg/100g e 1,5 mg/100g de cálcio, potássio e ferro, respectivamente, na farinha de milho (9, 22). Em relação às farinhas de mandioca temperadas (65,7 mg/100g de cálcio; 202 mg/100g de potássio e 1,36 mg/100g de ferro), a farinha à base de okara também apresenta níveis superiores dos minerais citados (9). Isto pode ser estimado pelo conteúdo de cinzas da FST, 3,8 e 11,1 vezes superior ao encontrado nas farinhas de mandioca e milho comerciais, respectivamente (Tabela 1).
Um dos pontos críticos na cadeia de produção alimentícia é a segurança microbiológica. Farinhas de soja e cereais geralmente apresentam microbiota semelhante ao solo de cultivo e em função de sua baixa atividade de água (aw) e sendo produtos ricos em proteínas e carboidratos, têm crescimento microbiano restrito, desde que armazenados com temperatura e umidade controladas. Porém, farinhas temperadas estão sujeitas a adição de ingredientes que podem ser fonte direta de contaminação microbiana, além de favorecer o aumento da aw e com isso propiciar o desenvolvimento de micro-organismos (23, 24).
Neste sentido, a tecnologia de irradiação constitui uma alternativa interessante na preservação do alimento (10). Conforme Silva (25), a radiação gama é capaz de eliminar a carga microbiana em alimentos devido aos danos provocados no DNA dos micro-organismos. Estes danos causados pela ação direta da radiação ionizante são resultado da energia de transferência dentro da própria molécula. Além disso, outros efeitos indiretos da radiação são capazes de alterar a estrutura celular e ou funções fisiológicas dos micro-organismos resultando em sua inativação.
Assim, amostras da FST foram submetidas a duas doses de radiação gama (1kGy e 3 kGy) e avaliadas quanto a possíveis alterações de seus componentes químicos (Tabela 2) e a estabilidade microbiológica (Tabela 3). Conforme os dados obtidos, as doses de irradiação de 1 kGy e de 3 kGy não causaram diferença significativa nos constituintes químicos em relação a amostra não irradiada (Controle) (Tabela 2).
Toledo et al. (26) avaliaram a influência da irradiação em diferentes doses (2, 4 e 8 kGy) sobre a composição química de grãos de soja de cinco cultivares diferentes e não observaram diferenças significativas em relação aos grãos de soja não irradiados. Resultados semelhantes foram obtidos por Zanão et al. (27), ao irradiarem grãos de arroz polido (Oryza sativa L.) nas doses de 0,5, 1,0, 3,0, e 5,0 kGy.
Segundo Silva (25), a irradiação em alimentos, assim como todos os processos de conservação pode afetar macronutrientes. Proteínas podem por exemplo, sofrer ruptura de aminoácidos sulfurados da cadeia proteica e provocar alterações na estrutura da proteína. Já carboidratos de alto peso molecular podem ser clivados em moléculas menores causando alterações na viscosidade de soluções. Porém estas alterações ocorrem normalmente em dose elevadas de radiação (≥ 10 kGy). Conforme Silva (25), apesar das possíveis alterações de constituintes químicos pela irradiação, estas são significativamente menores se comparadas a outros processos, como a esterilização por calor úmido.
Em alimentos ricos em lipídeos, tal como a FST (29,9 g/100g), as doses de irradiação aplicadas devem ser baixas, pois podem promover a oxidação lipídica e como consequência o aparecimento de ranço e sabores indesejáveis, além da destruição de vitaminas lipossolúveis e de ácidos graxos essenciais (28).
Dados publicados anteriormente pelos autores indicaram que durante 45 dias de armazenamento não houve deterioração oxidativa do produto, evidenciado através da determinação do índice de peróxido. Estes resultados sugerem que as doses de irradiação aplicadas foram eficientes para garantir a estabilidade química da FST (29).
A microbiota da FST é relativamente baixa, uma vez que farinhas em geral apresentam aw (atividade de água) baixa, em torno de 0,20, restringindo assim o crescimento microbiano. Apesar disso, bactérias do gênero Bacillus e bolores de diversos gêneros podem se desenvolver, comprometendo a qualidade e a segurança do alimento, sobretudo em shelf life longos, característicos de farinhas temperadas (23).
Conforme a legislação brasileira, farinhas temperadas ou farofas devem apresentar ausência de Salmonella, e baixos limites para Escherichia coli e Bacillus cereus (13). A FST controle (não irradiada) apresentou-se em conformidade com a legislação para Bacillus cereus, Salmonella, E. coli (Tabela 3). Porém, pela contagem de coliformes totais, bolores e leveduras apresentadas, o produto estaria impróprio para o consumo, embora a legislação não disponibilize limites para estes micro-organismos (Tabela 3) (30).
Especiarias adquiridas no comércio foram adicionadas na elaboração da FST, e se estas estavam contaminadas, podem ter contaminado o produto, elevando sua carga microbiana. Furlaneto; Mendes (24) avaliaram a qualidade microbiológica de especiarias desidratadas e observaram limites fora do Padrão Federal: cebolinha e manjericão para coliformes fecais, cebolinha e orégano para E. coli e cebolinha, canela em pau, orégano e manjericão para fungos. Uma vez que não foram realizados testes preliminares nas especiarias e embalagens utilizadas para o armazenamento, torna-se presuntivo a associação da alta carga microbiológica observada.
Ao serem submetidas a irradiação de 1 KGy houve redução significativa na contagem microbiana (diminuição de coliformes, bem como de bolores e leveduras em 2,5 e 4,2 ciclos logarítmicos, respectivamente), porém a dose utilizada não foi suficiente para ausentar todos os micro-organismos (Tabela 3). Conforme Franco; Landgraf (30), quanto maior a quantidade de micro-organismos presentes, maior deve ser a dose de radiação aplicada afim de causar uma redução logarítmica no número de micro-organismos. Além disso, meios ricos em proteínas, como é o caso da FST, conferem proteção aos micro-organismos tornando-os menos susceptíveis a ação da radiação, sendo necessárias doses mais elevadas.
Ao ser aplicada dose radioativa de 3 kGy houve inativação de todos os micro-organismos presentes na amostra, indicando a eficiência do processo (Tabela 3). Singer (31), analisou a contagem de coliformes a 35°C em farinha de trigo não irradiada e irradiada (0,5, 1,0 e 2,0 kGy) e observou que com o aumento da dose de irradiação houve uma melhora no controle do crescimento dos micro-organismos. Apesar do elevado teor de proteínas da farinha de soja temperada (38,2%, Tabela 2), mesmo a menor dose de irradiação utilizada (1 kGy) foi eficiente no controle dos micro-organismos analisados, pois houve drástica redução na concentração de coliformes, bolores e leveduras.
Análise sensorial As amostras de farinhas de soja temperada Controle (não irradiada) e as irradiadas com 1 kGy e 3 kGy apresentaram índice de aceitação (IA) superiores a 75% em todos os atributos avaliados, sendo a cor e a aparência global, os atributos que receberam maiores notas pelos provadores nos dias avaliados (Figuras 1 e 2). Conforme Dutcosky (16), produtos que apresentam Índice de Aceitação (IA) acima de 70% são considerados produtos promissores para comercialização.
Tanto no primeiro dia quanto no último dia (450) de armazenamento em que as três amostras de FST (Controle e irradiadas com 1 e 3 kGy) foram avaliadas, não houve diferença significativa para nenhum dos atributos, indicando que a irradiação não provocou alterações perceptíveis pelos provadores (Figuras 1 e 2).
Dados da literatura sugerem que ao irradiar alimentos alterações na cor, aroma e sabor, podem ocorrer dependendo do tipo de alimento, dose e tempo de irradiação, temperatura empregada durante o processo, além das condições de armazenamento (30, 32). Alimentos proteicos irradiados com doses elevadas de radiação podem sofrer quebras de grupamento sulfidrila de aminoácidos sulforosos que provocam alterações no sabor e aroma. Já em alimentos ricos em lipídeos a irradiação pode favorecer a produção de hidroperóxidos num processo semelhante a auto-oxidação promovendo a formação de sabores indesejáveis (32). Franco; Landgraf (30) ressaltam ainda que ação da irradiação sobre os lipídeos pode ser ainda mais prejudicial ao sabor se a irradiação ou armazenamento subsequente for realizado na presença de oxigênio.
Os resultados obtidos neste trabalho sugerem que as doses de irradiação empregadas foram eficientes do ponto de vista microbiológico (Tabela 3) e adequadas quanto a estabilidade dos atributos sensoriais (Figuras 1 e 2). Além disso, as condições de estocagem com ausência de oxigênio e luz contribuíram para a estabilidade oxidativa da FST caracterizadas sensorialmente pelos provadores e evidenciado em trabalho publicado anteriormente pelos autores quanto a ausência de peróxidos (29).
Outro ponto de importância para a aceitação das farinhas temperadas analisadas neste trabalho foi a textura, com IA de 80,22%, 80,55% e 76,44%, para as amostras Controle, irradiada a 1 kGy e a 3 kGy respectivamente. Conforme Uehara (33), a mudança na textura de alimentos vegetais pela irradiação se deve principalmente pela quebra de carboidratos, sendo este um fator determinante da dose a ser empregada na irradiação. Pelos resultados apresentados observa-se que as doses de irradiação empregadas não interferiram neste atributo.
A Farinha de Soja Temperada apresentou teor de proteína superior ao observado nas farinhas comerciais, caracterizando-se como um produto com excelentes atributos nutricionais e sensoriais. As doses de irradiação aplicadas foram eficientes para garantir a estabilidade microbiológica e sensorial da FST constituindo um método eficiente de controle microbiano do produto, sobretudo se as condições de armazenamento ao abrigo da luz e oxigênio forem mantidas. A Farinha Temperada de Soja à base de okara pode ser alternativa comercialmente viável, capaz de enriquecer nutricional e sensorialmente a mesa dos brasileiros.
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