CARACTERÍSTICAS QUÍMICAS E POTENCIAL DE AGROINDUSTRIALIZAÇÃO DO LEITE DE JUMENTA: UMA REVISÃO
Capítulo de livro publicado no livro: Ciência e tecnologia de alimentos: Pesquisas e avanços. Para acessa-lo clique aqui.
DOI: https://doi.org/10.53934/9786585062060-28
Este trabalho foi escrito por:
Dhafyne Nawendgy de Moura Silva *; Lívia Vitória Oliveira Moura ; Dyego da Costa Santos
*Autor correspondente (Corresponding author) – Email: [email protected]
Resumo: O Equus asinus, ou jumento, é um mamífero da família Equidae, que durante séculos foi desvalorizado e usado principalmente para transporte de cargas. Embora o leite de jumenta não seja muito usual no Brasil, sua busca e por produtos oriundos dele vem crescendo gradativamente pelo mundo, devido ao seu alto valor nutricional, sendo um possível substituto do leite humano para crianças. Assim, o objetivo deste trabalho foi realizar uma revisão bibliográfica sobre as características químicas e potencial de agroindustrialização do leite de jumenta. O leite de jumenta é caracterizado pelo alto teor de lactose, baixo teor de gordura, presença de ácidos graxos essenciais, baixa caseína/proteína relacionada à redução da capacidade alergênica e presença de enzimas com propriedade bactericida atribuído pelo alto nível de lisozima. Por esses motivos, as perspectivas futuras para a utilização desse leite são amplas e promissoras nas indústrias voltadas à produção e comercialização de produtos lácteos. A ausência de trabalhos sobre a temática, sobretudo no Brasil, demonstra que ainda há um grande campo a ser explorado, e que a obtenção de mais informações sobre esse leite contribui não somente para fins científicos, como também para a preservação da própria espécie.
Palavras–chave: derivados lácteos; Equus asinus; preservação da espécie; qualidade
INTRODUÇÃO
Grande parte da produção mundial de leite é representada por leites de vaca, cabra e ovelha. Essas espécies produzem cerca de 86% do leite disponível em todo o mundo (1) e são uma grande fonte de lucro para as indústrias alimentícias fabricantes de queijos, manteigas, sorvetes e iogurtes, dentre outros produtos. No entanto, outra alternativa não muito comum, mas que pode ser explorada pelo setor alimentício, é o leite de jumenta, pois apesar de se tratar de um leite produzido por uma espécie não convencional, apresenta grande potencial como substituto dos leites utilizados na fabricação desses produtos. Especialmente para crianças afetadas pela alergia às proteínas do leite de vaca ou alergias alimentares múltiplas que podem causar riscos de desnutrição, já que apresenta uma composição química muito semelhante ao leite humano (2,3).
O Equus asinus, popularmente chamado de jumento, é um mamífero da família Equidae, o qual em várias civilizações e durante séculos foi tido como um animal doméstico, usado principalmente para cargas por ser resistente e frugal. Embora o leite deste animal não seja muito usual no Brasil, a busca por este produto e por seus derivados cresce cada vez mais em países asiáticos e europeus. Esses produtos, por sua vez, não se caracterizam apenas como alimentícios, mas também estéticos, dado o fato de que as proteínas do leite são descritas como naturalmente ativas na hidratação e prevenção do envelhecimento da pele (4,5).
Contudo, apesar do incrível potencial que o leite de jumenta apresenta, a desvalorização desse animal, oriunda principalmente da modernização e do pensamento popular, ocasiona, por exemplo, a inferiorização do seu leite quando comparado a de outros animais de fazenda. Isso é visível quando se analisa que os gados e demais animais do meio são predominantes entre agricultores comerciais de grande escala, enquanto os jumentos são mais usados como animal de carga em propriedades de pequeno porte ou por agricultores pequenos (6). Isso quando não estão soltos ou a deriva em estradas, de onde são normalmente recolhidos, comprados a preço baixo ou até mesmo roubados de propriedades, para depois serem mantidos em condições precárias e vendidos a preços altíssimos fora do país.
A exemplo, destaca-se a China, que busca o animal principalmente para retirada de sua pele a fim de produzir o que eles chamam de “ejiao”, um remédio tradicional famoso por suas propriedades medicinais (7), além do leite que é muito buscado para produção de cosméticos. Em consequência disso, essa espécie não só está enfrentando uma crise global, como corre sério risco de extinção.
Portanto, a principal motivação para sustentar essa pesquisa bibliográfica reside na importância que o tema possui na sociedade atual, bem como ao fato de que apesar da temática possuir grande importância, tem sido pouco reportada, em particular, na literatura brasileira, se comparado com o leite de outras espécies convencionais como vaca e cabra. Isso acaba resultando na escassez de informações científica e técnica e pouca visibilidade sobre o assunto. Por essa razão, o objetivo deste estudo foi realizar uma revisão bibliográfica sobre as características químicas e o potencial de agroindustrialização do leite de jumenta, de modo a conscientizar a população acerca das propriedades desse produto, seus benefícios à saúde e a possibilidade de valorização dessa matéria-prima através de seu processamento, o que culminaria em provável desenvolvimento socioeconômico, além de contribuir para a preservação da espécie.
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ASPECTOS GERAIS DO LEITE DE JUMENTA
Em geral, o leite de todos os mamíferos apresenta composição similar, sendo constituído de água, proteínas, gorduras, carboidratos, vitaminas e minerais. Contudo, seus conteúdos variam entre o leite de ruminantes e não ruminantes. Além disso, mesmo dentro da mesma espécie, a genética, o ambiente, a fisiologia do animal e sua nutrição também são fatores que podem influenciar, fazendo com que possa haver variação na composição do leite (8).
No leite de jumenta, em especial, Salimei e Fantuz (9) e Martini et al. (10) destacaram que a produção e a qualidade desse leite é afetada principalmente pela estação do ano, número de ordenhas, estágio de lactação, nutrição e raça desses animais. Na Tabela 1 é descrita a diferença na composição do leite em diferentes espécies.
Visto o alto valor das características biológicas do leite dessa espécie, ele tem despertado interesse não somente científico como também de possíveis investidores e consumidores nos últimos anos (11). Entretanto, embora tenha havido um aumento em seu interesse, ele ainda é pouco pesquisado e trabalhado. Esse fato pode estar relacionado à média baixa de produção, uma vez que em comparação com o leite de vaca, que tem uma média de produção de 7 a 8 litros por dia (12), o leite de jumenta tem produção média de apenas 100-150 kg de leite em cada período de lactação, considerada uma quantidade baixa para processamento (10,13,14,15). Ademais, a espécie tem período maior de gestação (374 dias), sendo mais longa que a gestação em éguas (336 dias), e menor período de lactação (180 a 300 dias) se comparado a de outros equinos (16,17,18).
Vale ressaltar que, embora os requisitos de nutrientes para a gestação do animal ainda não sejam determinados com precisão, o período de lactação costuma variar conforme características do animal e de como ele é mantido. Isso evidencia a necessidade de mais estudos para uma melhor definição acerca das necessidades das jumentas em lactação e do seu leite, com o intuito de ampliar as perspectivas futuras em questão de criação, produção e comercialização.
Lactose
A lactose é um dissacarídeo composto por uma molécula de glicose e uma de galactose, que ao ser hidrolisado pela enzima lactase, libera seus componentes para a absorção na corrente sanguínea (19). Segundo Zychar e Oliveira (20), a lactose desempenha alguns papéis importantes no organismo, como fonte de energia, constituinte dos cerebrosídeos presentes na massa cerebral e mielina nervosa, atuando também na retenção de cálcio e magnésio no organismo, além de prolongar a ação da vitamina D.
Independentemente da espécie, a lactose é quantitativamente o principal carboidrato existente no leite de todos os mamíferos, pois sua concentração é similar nos leites de égua, jumenta e humano, e menor no leite dos ruminantes, além de apresentar também traços de outros açúcares como glicose, frutose, glicosamina, galactosamina e oligossacarídeos (8). A presença desses oligossacarídeos confirma a adequação do leite de jumenta como alimento infantil, visto que eles possuem potencial de modular o crescimento da flora intestinal, bem como influenciar diferentes processos gastrointestinais e inflamatórios, além de fornecer proteção contra infecções (21).
Salimei et al. (22) e Giosuè et al. (23) encontraram em seus estudos teores médios de lactose aproximados no leite de jumenta, de 6,40% e 6,88%, respectivamente. Devido ao alto teor de lactose, esse leite possui um sabor consideravelmente mais doce do que outros tipos de leite geralmente destinados ao consumo humano. Esse alto teor de lactose também é responsável pela boa palatabilidade e melhor absorção intestinal do cálcio, que é essencial para a mineralização óssea dos lactentes (24,25).
Gordura
A gordura do leite é o constituinte que mais varia na composição, costumando ter seu teor variando de 0,28% a 1,82% (5). Até agora os principais fatores que afetam no valor de seu teor são a raça, estratégia de ordenha, manejo alimentar, época do ano, e o período de lactação (26). Venturini et al. (27) realizou um estudo no qual é feito um comparativo do leite de jumenta com leites de outros lactantes, inclusive os mais comuns como vaca e cabra. Através dos resultados dessa pesquisa, torna-se perceptível que em comparação com os leites normalmente consumidos, o leite de jumenta apresenta uma porcentagem menor no que se refere a teor de gordura. Na Tabela 1 é mostrado a diferença nos teores de gordura em diferentes espécies.
Ácidos graxos
Os ácidos graxos são ácidos carboxílicos com cadeias hidrocarbonadas, classificados segundo o comprimento da cadeia de carbonos (curta, média e longa) e a presença e número de duplas ligações (28). No estudo de Claeys et al. (29) foi feito um comparativo da presença de três tipos principais de ácidos graxos nas espécies humano, asinina, equina, bovina, ovina e caprina, sendo esses ácidos graxos respectivamente: AGS (ácidos graxos saturados), AGMI (ácidos graxos monoinsaturados) e AGPIs (ácidos graxos poliinsaturados), os quais estão dispostos na Tabela 2. No leite dos asininos foi apresentado baixo teor de AGS (46,7%) em comparação com os demais, embora ainda alcançando um número maior que o teor encontrado no leite equino e no leite humano, que teve resultados respectivamente de 37,5% e 39,4%. Ademais, o leite de jumenta apresentou também menor concentração no teor de AGMI (15,31%) dentre os leites estudados, em contraste com uma maior concentração de AGPIs (14,17%), perdendo apenas para os equinos (12,8%).
Tabela 2 – Perfil de ácidos graxos do leite de alguns mamíferos em porcentagem
Espécie | Ácidos Graxos Saturados (%) | Ácidos Graxos Monoinsaturados (%) | Ácidos Graxos Poli-insaturados (%) |
Humano | 39,4 – 45 | 33,2 – 45,1 | 8,1 – 19,1 |
Equina | 37,5 – 55,8 | 18,9 – 36,2 | 12,8 – 51,3 |
Asinina | 46,7 – 67,7 | 15,31 – 35,0 | 14,17 – 30,5 |
Bovina | 55,7 – 72,8 | 22,7 – 30,3 | 2,4 – 6,3 |
Ovina | 57,5 – 74,6 | 23,0 – 39,1 | 2,5 – 7,3 |
Caprina | 59,9 – 73,7 | 21,8 – 35,9 | 2,6 – 5,6 |
Fonte: Adaptado de Claeys et al. (29).
Isso confirma o que foi estudado por Martemucci e D’Alessandro (30), Martini et al. (31) e Li et al. (14). De acordo com estes autores, a fração lipídica do leite asinino apresenta uma composição de ácidos graxos mais favorável que os demais leites, por este ser caracterizado pela presença de ácidos graxos essenciais, por possuir menor concentração de ácidos graxos saturados se comparado aos leites bovino, ovino e caprino, menor concentração de ácidos graxos monoinsaturados e maior teor de ácidos graxos poli-insaturados.
COMPOSIÇÃO DO LEITE DE JUMENTA
Proteínas
Em relação às proteínas, Messias et al. (15) destacam que o leite humano e de jumenta compartilham características quantitativas e qualitativas semelhantes nos perfis protéicos. A caseína, por exemplo, é um componente menor de ambos os leites. Contudo, o leite de jumenta tem um teor de proteína total menor em comparação com o leite de vaca, já que seu valor médio está entre cerca de 1,63 a 1,7 g/100 mL (32). Valores semelhantes foram obtidos por Doreau et al. (33) e Salimei et al. (22), que relataram que o valor médio de proteína do leite de jumenta é de 1,72%. Enquanto Giosuè et al. (23) obtiveram o valor médio de 1,89%.
Ademais, uma digestão simulada in vitro mostrou que a caseína de jumento possui uma degradabilidade rápida e uma digestibilidade quase completa (34). Isso pode desempenhar um papel na redução da alergenicidade do leite de jumenta, uma vez que a alergenicidade da proteína alimentar também está ligada à sobrevivência do alérgeno no trato gastrointestinal (35).
No que se refere às proteínas presentes no soro, tanto no leite humano quanto no de jumenta uma proteína altamente representada é α-lactalbumina, em média cerca de 2 e 3 g/L em jumenta e humano, respectivamente (11). A α-lactalbumina desempenha um papel fundamental na síntese de lactose na glândula mamária e fornece uma importante fonte de aminoácidos essenciais no leite humano. Além disso, a α-lactalbumina é resistente à digestão e atinge o trato intestinal quase intacto, onde estimula a mucosa e regula a função imunológica geral do lactente (36).
A α-lactalbumina também inibe o crescimento de vários patógenos potenciais, tanto in vitro quanto in vivo, e por ser uma proteína de ligação ao cálcio que pode se ligar ao ferro e ao zinco, tendo efeito estimulante na absorção de minerais (37). O conteúdo semelhante de α-lactalbumina nos dois tipos de leite é interessante para o bem-estar e nutrição infantil, considerando também que as fórmulas infantis à base de leite bovino são pobres nessa proteína e devem ser frequentemente enriquecidas (36).
De modo geral, o teor de proteína no soro do leite de jumenta é de 0,64 g/100 ml, que é muito semelhante ao do leite humano, ou seja, 0,76 g/100 ml (32,38). Salimei et al. (22) também descreveram um valor semelhante de 0,68% para a proteína do soro do leite. A relação de baixa caseína/proteína do soro também desempenha um papel importante na sensibilização à fração proteica do leite de vaca, reduzindo a capacidade alergênica. Tem sido relatado que quanto menor o valor da relação caseína/proteína de soro de leite, menor a capacidade alergênica (39).
Enzimas
Segundo Malacarne et al. (40), as enzimas do leite de jumenta possuem algumas características distintivas, como a propriedade bactericida que o distingue dos leites de outros mamíferos. A atividade inibitória microbiana no leite de jumenta é muito alta em comparação com o leite de outros mamíferos. Isso foi atribuído à presença de alto nível de lisozima (1,0 g/L) que, ao contrário da lactoperoxidase e das imunoglobulinas (principais sistemas de defesa no leite bovino), é praticamente ausente no leite de vaca, ovelha e cabra, sendo um dos componentes do leite de jumenta com propriedades biológicas úteis (22,41).
De acordo com Pereira (42), que realizou um estudo com jumentas da raça Nordestina, a contagem de células somáticas médias encontradas no leite de jumenta é o equivalente a 4,54 log CCS/mL. Resultados semelhantes foram encontrados por Salimei et al. (22), que destaca que a contagem de células somáticas e a contagem de bactérias totais do leite de jumenta são muito baixas, da ordem de 3,68 log CCS/mL e 4,46 log UFC/mL, respectivamente.
A lisozima é conhecida por ser um agente antimicrobiano natural que atua diretamente sobre as paredes celulares das bactérias, realizando a hidrólise dos polissacarídeos presentes nas mesmas e inibindo assim o desenvolvimento desses microrganismos no leite de jumenta (43). Sua concentração é retratada na literatura como sendo duas vezes maior em relação ao leite humano (32,44), enquanto que o teor de lactoferrina, enzima também presente no leite de jumenta, é cerca de duas vezes maior do que o relatado para o leite bovino (40). Isso demonstra os efeitos potenciais positivos e potenciais sobre a estocagem desse leite cru (45). A Tabela 3 dispõe as concentrações de lactoperoxidase, lisozima e lactoferrina no leite humano, asinino e bovino.
Tabela 3 – Concentração de lactoperoxidase, lisozima e lactoferrina no leite humano, asinino e bovino
Espécie | Lactoperoxidase (mg/L) | Lisozima (g/L) | Lactoferrina (g/L) |
Humano | 0,77 | 0,12 | 0,3 – 4,2 |
Asinina | 0,11 | 1,0 | 0,080 |
Bovino | 30 – 100 | Traços | 0,10 |
Fonte: Polidori e Vincenzetti (46).
PROCESSAMENTO DO LEITE DE JUMENTA
Há um interesse crescente no leite de jumenta devido às suas propriedades curativas, bem como por suas semelhanças com o leite humano. Esses fatores fazem com que o leite de jumenta seja considerado um alimento funcional e que hajam cada vez mais buscas por estudos relacionados a produtos lácteos feitos a partir do leite de jumenta, mesmo que esse leite não seja comumente explorado como produto alimentar comercial até agora (47).
Devido às suas propriedades únicas, o processamento do leite de jumenta em produtos lácteos tradicionais é difícil. Por exemplo, o queijo não pode ser facilmente fabricado por causa da falta de coalhada firme no coalho. Entretanto, o leite de jumenta tem a capacidade de formar um coágulo fraco em condições ácidas e, portanto, sua capacidade é utilizada para a produção de produtos do tipo iogurte com probióticos e propriedades terapêuticas (48).
É perceptível que o desenvolvimento e utilização do leite de jumenta tem grande valor econômico e social. No entanto, a composição, os nutrientes e funções desse leite não são bem estudados e dados básicos precisam ser coletados, principalmente no que tange a literatura brasileira, o que restringe a indústria de alimentos no desenvolvimento de produtos com o leite dessa espécie.
Leite de jumenta fermentado
O leite fermentado é o leite cuja fermentação se realiza com um ou vários cultivos, sendo eles: Lactobacillus acidophilus, Lactobacillus casei, Bifidobacterium sp, Streptococcus salivarius subsp thermophilus e/ou outras bactérias ácido-lácticas (49). Esse leite é inoculado com essas culturas, que através da fermentação convertem parte da lactose presentes em ácido lático. Isso aumenta assim seu prazo de validade, inibe o crescimento de bactérias patogênicas ou deteriorantes, e confere características sensoriais por meio de substâncias formadas durante o processo, como: dióxido de carbono, ácido acético e acetaldeído (50). Produtos que consumimos diariamente como iogurte, kefir e coalhada são exemplos de leites fermentados.
De acordo com Pal et al. (51), devido ao baixo teor de caseína e de gordura presentes no leite de jumenta, ao ser processado esse leite forma um gel muito fraco e difícil de se converter em queijo. Assim, a produção de bebidas fermentadas a partir do leite de jumenta pode ser outra forma de aumentar a vida útil desse produto, já que a maioria dos estudos relacionados à produção de bebidas fermentadas a partir do leite de jumenta apresentam os mesmos resultados: ótimo potencial probiótico, baixas contagens bacterianas, acidez agradável e uma atividade antioxidante maior (47,52,53).
Contudo, o baixo teor de gordura e sólidos totais no leite de jumenta, além da estrutura das micelas de caseína, também pode favorecer a formação de coágulos frágeis e atribuir aos produtos fermentados uma baixa consistência, o que, além do sabor desconhecido, pode restringir a sua aceitabilidade no mercado consumidor (9,54). Assim, misturar o leite de jumenta com leites de outras espécies para produzir uma bebida fermentada também se torna uma opção, pois pode resultar em boa aceitação sensorial e melhor consistência.
Isso pode ser observado em um estudo realizado por Gomes et al. (55), que produziram iogurtes a partir de leite de jumenta misturado com leites de vaca, búfala e cabra. Os três tipos de iogurtes produzidos pela autora proporcionaram maior teor de gordura, proteína, lactose e teor de sólidos totais quando comparamos os resultados encontrados com o leite fermentado elaborado apenas com leite de jumenta desenvolvido por Tidona et al. (56) e Cavalcanti et al. (57), sendo que os maiores valores encontrados foram na combinação de leite de jumenta com leite de búfala.
Dessa forma, a produção de leite de jumenta fermentado pode ser uma abordagem interessante, principalmente quando misturado com o leite de outras espécies, devido as suas boas qualidades sensoriais, propriedades funcionais, e baixas contagens bacterianas. Sendo seu aproveitamento uma ótima oportunidade para as indústrias alimentícias no desenvolvimento de produtos lácteos, como destacado por Cavalcanti et al. (57).
Queijo
A fabricação de queijo com leite de jumenta não é considerada interessante, principalmente a nível industrial, devido às dificuldades de coagulação e formação da coalhada ocasionadas pelo baixo teor de caseína presente no leite (24,58). No entanto, alguns estudos recentes mostram que é possível produzir queijo a partir do leite de jumenta, utilizando uma abordagem diferente.Em um estudo realizado por Faccia et al. (59), pôde-se confirmar que o leite de jumenta pode ser transformado em queijo fresco por coagulação enzimática em condições tecnológicas adequadas, utilizando coalho microbiano.
A composição química e sensorial do queijo fresco de jumenta pode ser muito interessante do ponto de vista nutricional, devido aos baixíssimos teores de gordura e sabor agradável. Contudo, a escassa disponibilidade e o alto custo da matéria-prima atualmente limitam a aplicação prática. Assim, estudos por cientistas de pecuária e de alimentos são necessários para não somente estudar uma maneira de aumentar a produção de leite de lactantes jumentas como também para melhorar a textura do queijo e o rendimento de sua fabricação (59).
Leite em pó
O leite em pó é um alimento de preparo rápido, fortificado com vitaminas e minerais, e seu consumo tem crescido cada vez mais ao redor do mundo em função da sua praticidade de preparo e segurança alimentar (60). Trata-se de um derivado lácteo obtido principalmente pela desidratação do leite, sendo classificado a partir do teor de gordura presente em: leite em pó integral (teor de gordura maior ou igual a 26,0%), parcialmente desnatado, (teor de gordura oscilando entre 1,5 e 25,9 %) e desnatado (menor que 1,5 %) (61).
Assim como acontece com outros produtos da indústria alimentícia, a conversão do leite em pó consiste em várias operações unitárias, como é mostrado na Figura 1.
Como a água é o maior componente do leite in natura, um dos principais objetivos em desidratar o leite é preservá-lo nutricionalmente e aumentar sua vida de prateleira, dispensando a refrigeração (60). A composição do leite de jumenta é perecível na natureza e o armazenamento a longo prazo é difícil. Contudo, com o uso de técnicas de beneficiamento do leite por conversão em pó, o armazenamento a longo prazo do leite de jumenta é possível sem grande perda de seu valor nutricional (3). Assim, o leite de jumenta torna-se uma ótima alternativa e que pode ser usado para várias finalidades, desde o consumo doméstico, para crianças e adultos, até consumos industriais e hospitalares. Li et al. (14) produziram leite de jumenta em pó e reportaram que o mesmo seria melhor indicado para a alimentação infantil que o leite de vaca em pó, por apresentar lactose mais compatível com o leite humano, presença de aminoácidos essenciais e conteúdos mais baixos de gordura e colesterol, inclusive com proporções adequadas de cálcio e fósforo.
Sorvete
Em um estudo realizado por Tidona et al. (62), morangos frescos e leite de jumenta foram utilizados para desenvolver um sorvete com alto perfil funcional. O sorvete foi suplementado com duas cepas de bactérias de ácido lático apresentando propriedades probióticas, Lactobacillus plantarum 998 e Bifidobacteriumteenis ATCC15703, e levou em consideração alguns parâmetros a serem avaliados, como a composição do sorvete, as propriedades físico-químicas, a qualidade microbiológica, a sobrevivência de bactérias lácticas utilizadas, etc.
No que tange a composição do sorvete, Tidona et al. (62) avaliaram que a matéria seca foi determinada como sendo de 26,44±0,15 g/100g e o principal componente foi a sacarose (19,79±0,03g/100g), que foi adicionada para o preparo do sorvete. Entretanto, outros açúcares também foram encontrados e quantificados durante o estudo, como é o caso da lactose (2,98±0,02g/100g), principalmente do leite de jumenta, glicose (1,13±0,01g/100g) e frutose (1,28±0,01g/100g), que foram atribuídas aos morangos. Em consonância com a composição do leite de jumenta, o teor de proteína foi baixo (1,19±0,02g/100g) e os lipídios presentes apenas em traços (0,08±0,01g/100g) nutricionalmente, fazendo com que essas amostras de sorvete pudessem ser classificadas com níveis de gordura muito baixos.
Entretanto, através desse estudo foi possível observar que o alto perfil nutricional e as propriedades promotoras da saúde do leite de jumenta, combinados com os micronutrientes de uma fruta vermelha fresca, são capazes de produzir um sorvete funcional não convencional de baixas calorias, que também prova entregar com sucesso probióticas propriedades, já que os morangos são ricos em compostos fenólicos e são comumente adicionados aos produtos lácteos para aumentar sua funcionalidade e capacidade antioxidante (62). Tidona et al. (62) destaca ainda que, com exceção da vitamina C, que diminuiu gradativamente durante seu estudo, o valor nutricional do sorvete se manteve estável ao longo do período de armazenamento, sendo uma ótima alternativa de processamento para a indústria de alimentos.
EXPLORAÇÃO CONSCIENTE DO LEITE DE JUMENTA
Muitas culturas no mundo, incluindo a do Nordeste do Brasil, têm as espécies equinas historicamente utilizadas para entretenimento, montaria, transporte de pessoas, de bens e de produtos agropecuários (63). Estes animais, como é o caso do jumento, normalmente são encontrados nas posses de nômades e pequenos agricultores, que por não terem tanto conhecimento acerca desses animais, acabam não aproveitando nem se beneficiando de seus potenciais, se não como carga ou transporte.
Recentemente, o jumento, assim como o burro e outros animais da família Equidae, vem perdendo sua importância nas atividades rurais, em decorrência principalmente das recentes transformações promovidas no meio rural, como a chegada das tecnologias motorizadas. Isso ocasiona dessa forma a vulnerabilidade em termos de sustentabilidade, perda de interesse na criação e abandono, onde o animal é deixado para viver por conta própria, vagando em condições selvagens e invadindo principalmente estradas, se tornando muitas vezes causas de acidentes automobilísticos (64,65).
A criação de jumentos se encontra em extinção (66), e o desconhecimento local sobre as potencialidades de fabricação de produtos alimentícios a partir da espécie, tal como a crescente demanda internacional pela pele dos jumentos, onde se é extraído o “ejiao”, um tipo de gelatina amplamente utilizada na medicina tradicional chinesa, são fatores que contribuem ainda mais com a redução da população do animal. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (12), houve uma diminuição na população da espécie de 974.688 em 2011 a 376.874 jumentos, representando uma queda de 38% em seis anos.
Embora tenha havido um crescimento de estudos em todo o mundo acerca do potencial do leite de jumenta, no Brasil ainda não existem sistemas de produção claramente definidos visando a exploração racional da espécie jumenta, o que dificulta a organização da cadeia produtiva do leite de jumenta e seus derivados. Enquanto isso, na União Europeia já existe a presença de atividades agrícolas com a espécie, localizadas principalmente na Itália, França, Espanha e Bélgica (67,68).
Diante desse cenário, a comunidade científica renovou o interesse pelos jumentos, envolvendo-se na recuperação e no resgate de algumas raças quase extintas (69). É notório que as perspectivas futuras são realmente muito amplas em questão de criação, produção e comercialização. A exploração consciente desses animais pode agregar perspectivas promissoras por meio da atividade leiteira, associada a implementações de programas de incentivo à criação e preservação da espécie, dessa forma contribuindo para fonte de desenvolvimento econômico na região.
CONCLUSÕES
O presente estudo mostra que, embora seja um produto pouco usual no Brasil, o leite de jumenta possui um perfil nutricional único por apresentar em sua composição alto teor de lactose, menor teor de gordura, maior teor de ácidos graxos poli-insaturados, baixo teor de caseína/proteína e à presença de alto nível de lisozima. Dessa forma, podendo ser considerado interessante para a nutrição humana. Além disso, esse leite demonstra grande potencial no que se refere à agroindustrialização e traz inovações para indústrias de alimentos, principalmente no que tange a produção e comercialização de produtos lácteos.
Conscientizar a população acerca das propriedades desse produto, seus benefícios à saúde, e a possibilidade de valorização dessa matéria-prima através de seu processamento pela atividade leiteira, ocasiona o incentivo da criação do animal, e também culmina em um provável desenvolvimento econômico nas regiões, assegurando dessa forma a preservação de uma cultura popular. Ademais, a ausência de trabalhos sobre o assunto se comparado com leites convencionais, demonstra que há um grande campo a ser explorado, e que a obtenção de mais informações sobre o leite de jumenta contribui não somente para fins científicos, como também para a preservação da própria espécie.
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