DESENVOLVIMENTO DA CULTURA EM SEGURANÇA DE ALIMENTOS: RELATO DE EXPERIÊNCIA
Capítulo de livro publicado no livro do I Congresso Latino-Americano de Segurança de Alimentos. Para acessa-lo clique aqui.
DOI: https://doi.org/10.53934/08082023-28
Este trabalho foi escrito por:
*Autor correspondente (Corresponding author) – Email: [email protected]
Resumo
A cultura em segurança de alimentos, tem sido elemento chave das empresas do ramo alimentício para ampliação da eficácia dos sistemas de gestão implantados, porém falar de cultura em segurança de alimentos, é falar de mudança de hábitos, que não é uma tarefa fácil, sendo necessário escolher metodologias e estratégicas corretas para que a empresa possa atingir seu objetivo. Este relato de experiência trata-se de um trabalho desenvolvido em um abatedouro frigorifico de bovinos, com aproximadamente 600 funcionários. O objetivo do trabalho, foi realizar atividades para o desenvolvimento da cultura dos funcionários em segurança de alimentos e, em intervalos periódicos realizar uma medição por meio de metodologias pré-estabelecidas para avaliação do nível de percepção dos funcionários sobre o tema abordado. O desenvolvimento da cultura em segurança de alimentos é um trabalho árduo e a equipe técnica responsável por esse trabalho, deve ser preparada, ter persistência e visão para mudanças de metodologias quando necessário e, total apoio da alta direção da empresa.
Palavras-chave: alimentos, cultura, funcionários
Abstract
The food safety culture has been a key element of companies in the food industry to increase the effectiveness of the implemented management systems, but talking about food safety culture is talking about changing habits, which is not an easy task, and necessary to choose correct methodologies and strategies so that the company can reach its objective. This experience report is about a work developed in a cattle slaughterhouse, with approximately 600 employees. The objective of the work was to carry out activities for the development of employees’ culture in food safety and, at periodic intervals, carry out a measurement through pre-established methodologies to assess the level of perception of employees on the topic addressed. The development of a food safety culture is hard work and the technical team responsible for this work must be prepared, have persistence and vision to change methodologies when necessary, and full support from the company’s top management.
Keywords: foods; culture; employees
INTRODUÇÃO
Considera que a invenção do conceito de CULTURA se deu pós-evolução semântica da palavra CULTURA, que ocorreu na língua francesa no século XVIII, e só depois se difundiu, por empréstimo linguístico, às línguas alemã e inglesa (1).
O termo “cultura” no sentido figurado começa a ser utilizado, com mais frequência, no século XVIII, inicialmente, seguido de um complemento, “cultura das artes”, “cultura das letras”, “cultura das ciências”, como se fosse necessário que a coisa cultivada estivesse explicitada; em seguida, para designar a “formação”, a “educação” (1).
Conforme Hall (2) “toda ação social é cultural, que todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado e, neste sentido, são práticas de significação”, ou seja, toda prática social tem uma dimensão cultural, da mesma forma que as práticas política e econômica, também possuem uma dimensão cultural. Para Neto (3), não é “tomar a cultura como uma instância epistemologicamente superior às demais instâncias sociais, mas sim tomá-la atravessando tudo aquilo que é do social”.
A expressão segurança alimentar foi utilizada, pela primeira vez, na Europa, com o fim da Primeira Guerra Mundial, pois perceberam que o controle sobre o fornecimento de alimentos era determinante para o comando de outro. Em outras palavras, um país que tem os meios de produção e distribuição de alimentos é capaz de controlar os outros que sofrem com a escassez de comida. Tratava-se de uma estratégia importante sob a perspectiva militar, sobretudo quando aplicada por um país com grande potencial. Dessa forma, o termo passou a ser visto como uma questão de segurança nacional, pois cada país passava a ter capacidade de ser autossuficiente e garantir estoques estratégicos de alimentos (4).
Em suma, segurança alimentar consiste em garantir a todas as pessoas alimentos básicos de qualidade, em quantidades suficientes, de maneira permanente, mas sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, baseado em práticas alimentares saudáveis. No entanto, embora os termos segurança alimentar e segurança dos alimentos estejam associados um aos outros, e comumente confundidos, apresentam realidades distintas. Podemos dizer que a segurança dos alimentos é um conjunto de práticas que garante o controle e a redução dos riscos de contaminação física e microbiológica nos processos de produção, manipulação e distribuição de alimentos (4).
Segundo a Global Food Safety Initiative (GFSI), cultura de segurança de alimentos apresenta a seguinte definição: “São valores compartilhados, crenças e normas que afetam o pensamento e o comportamento em relação à Segurança de Alimentos em, através, e por toda a organização” (5).
A relação entre a Cultura de Segurança de Alimentos e a Segurança de Alimentos é muito forte, estando ambas intrinsicamente ligadas, não sendo possível existir segurança dos alimentos sem a cultura de segurança de alimentos, e vice-versa (4).
A norma global em segurança de alimentos BRCGS FOOD, em agosto de 2022 publicou a revisão 9, que passou a valer a partir de fevereiro de 2023, no qual a cultura em segurança de alimentos continua sendo uma parte importante da norma, principalmente no quesito melhorias continua (6).
METODOLOGIA
Uma das metodologias mais indicadas atualmente é o PDCA (planejamento, execução, verificação e ação). Então com base nessa metodologia, planejou-se algumas atividades, com o objetivo de promover o desenvolvimento da cultura em segurança de alimentos, como os exemplos citados abaixo.
Comunicação visual e campanhas de conscientização: esta prática foi um ótimo recurso para a fixação dos valores da empresa. Utilizamos como meio de comunicação um painel disponível na área de descanso, de fácil acesso aos funcionários. Os principais exemplos utilizados para a prática dessa metodologia foram: campanha com fotos do público que consome os produtos e frases de efeito (principalmente se o público-alvo for uma população de risco, como crianças ou idosos). Nesse sentindo ressaltamos a importância da segurança dos alimentos, quando os próprios colaboradores e suas famílias consomem os produtos elaborados pela empresa, ou seja, por eles mesmo. Com a aplicação dessa metodologia, percebeu-se que houve uma certa sensibilização e orgulho dos funcionários, vendo o resultado de seu trabalho na mesa dos consumidores. O painel também é utilizado para tratativas de assuntos que a equipe julga importante para o desenvolvimento da cultura em segurança de alimentos.
Programa *GQ de portas abertas: outra metodologia que foi muito aceita, e que vem tendo resultados, é o programa *Garantia de Qualidade de portas abertas, que tem como objetivo, informar os funcionários durante as integrações e treinamentos de reciclagens, que as portas da Garantia de Qualidade, estão abertas, para o funcionário informar sobre qualquer risco a segurança dos alimentos que seja evidenciada no seu ambiente de trabalho ou no ambiente de forma em geral. Ainda nas integrações e treinamentos os colaboradores são informados sobre a possibilidade de relatar estas situações de maneira confidencial. Para relatos de forma confidencial, disponibilizou-se caixinhas de sugestão e formulários específicos em locais estratégicos da indústria, para que os funcionários possam informar por escrito as situações de risco ou propostas de melhorias que são evidenciadas no seu dia a dia. Semanalmente as caixinhas são abertas, e recolhe-se os formulários, a equipe de gestão reúne-se para realizar as investigações e tratativas das situações apontadas.
E, por fim os treinamentos são essenciais para promoção do desenvolvimento da cultura em segurança de alimentos. Nos treinamentos são abordados o tema, e informados as metodologias utilizadas para o desenvolvimento da cultura em segurança de alimentos, além de auxiliar os funcionários em como eles podem nos ajudar, por exemplo, é informado sobre os programas e metodologias disponíveis.
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Seguindo a metodologia PDCA, na parte de execução, iniciou-se alguns trabalhos e projetos sobre o tema “cultura em segurança de alimentos” entre o ano de 2020 e 2021, porém não foram efetivos e, devido a pandemia, foram interrompidos. A partir de fevereiro de 2022, retornamos os projetos e, em fevereiro de 2023, completou-se um ano, desde o início efetivo, dessa forma, o presente relato de experiência é sobre esse período, onde realizou-se várias atividades com o propósito de desenvolver a cultura de segurança de alimentos dos trabalhadores.
Há duas ocasiões especificas em que são abordados o tema de cultura em segurança de alimentos, sendo na integração de novos funcionários e nos treinamentos de reciclagens que devem ocorrer no mínimo uma vez ao ano. Sabe-se que, somente nesses dois momentos, não teríamos os resultados esperados, dessa forma, agregou-se outras atividades, dentre elas, disposição de painel na área de descanso dos funcionários, esse painel trata de um assunto por mês, onde é disponibilizado material para leitura. Junto ao painel, também se disponibiliza outras cartilhas sobre diversos assuntos, para que os funcionários possam ter acesso. Dentre os assuntos tratados no painel no decorrer de um ano temos: informativos sobre os PAC’s – Procedimentos de Autocontrole; informativos sobre as bactérias (ruim e boas); informativos sobre a origem do programa de segurança de alimentos APPCC – Análises dos Perigos e Pontos Críticos de Controle; informativo sobre quem é o manipulador de alimentos (regras de boas práticas de fabricação); informativos sobre o procedimento de lavagem das mãos e botas; informativos sobre conservação dos alimentos (congelados e resfriados); informativos sobre doenças transmitidas por alimentos; informativo sobre os resultados da semana da qualidade; informativo sobre alergênicos (contaminações cruzadas), dentre outros temas que se julga de importância para o desenvolvimento da cultura em segurança de alimentos.
Após sete dias de disponibilização do novo tema do painel, a equipe de qualidade questionam os funcionários nos setores de produção, se já sabem qual o novo tema do painel, caso esses acertem de forma objetiva, ou seja, já tenham feito a leitura e conhecimento do tema, esse funcionário ganhará uma estrela, e seu nome e setor, juntamente com a estrela dourada, será disponibilizada no painel, em parte especifica para esse tipo de demonstração, isso servirá de estimulo e incentivo para os demais, e caso não saiba ainda sobre o tema, o questionador irá instigar o funcionário a ir realizar a leitura.
O programa *GQ de portas abertas, foi uma forma que se encontrou de aproximar os funcionários da equipe de qualidade, fazê-los entender que o objetivo da qualidade é ajudar, auxiliar e orientar, e dessa forma tentar desmitificar a teoria de polícia e ladrão. Essa mudança de comportamento dos funcionários perante a equipe de qualidade, é um fator muito importante para o sucesso do desenvolvimento da cultura em segurança de alimentos. Há opções do contato direto com a equipe, onde o funcionário pode chegar em qualquer membro da equipe da qualidade e expor suas dúvidas, solicitar orientação, ou até mesmo relatar situações que possam comprometer a qualidade e segurança dos alimentos produzidos. Sabe-se que muitos ainda possuem receio desse contato, e também alguns preferem conservar sua identidade, criou-se também a opção deles se expressarem de forma confidencial, por meio da disponibilização das caixinhas de sugestão em locais estratégicos, com disponibilidade de canetas e formulários para relatos por parte dos funcionários. É importante não ter câmeras de segurança nesses locais, para preservar as identidades.
Durante esse período de um ano, recolheu-se muitos questionamentos dos funcionários, onde todos foram investigados, e em caso de procedências tratados e, essas tratativas disponibilizadas em mural, para que todos os funcionários possam acompanhar. Esse procedimento também estimula os funcionários a terem vontade de se manifestar, tendo em vista, que seus relatos estão sendo tratados. A seguir alguns relatos de situações apontadas pelos funcionários, por meio das caixas de sugestão: colocar botão de ligar e desligar a bomba, no corredor de boi quente, entre as câmaras 6 e 12; colocar ventilador na sala de lavagem de caixas do setor de miúdos; roupas da lavanderia estão ficando encardidas; desentupir o bico do lavador de caixa da desossa; trocar registro de água da sala de utensílios da desossa; falta suporte de mangueira no corredor das câmaras novas; seria interessante disponibilizar uma pia na sala de manutenção imediata do setor de desossa; atraso na entrega dos uniformes; ponto de ar do setor de triparia está ruim; tanque da sala de salga do filé mignon, com problemas de saída de água. Esses são alguns exemplos, entre várias outras, que auxiliam a equipe de gestão dos setores produtivos. Em um certo momento no decorrer desse período, também recebemos o seguinte relato, “parabéns a gerência administrativa, industrial e de qualidade, que Jesus os abençoe”.
No decorrer do ano, é programada a semana da qualidade, que é o período em que temos uma interação mais descontraídas, por meio de atividades diversificadas, que tem o objetivo de elevar o conhecimento dos funcionários em cultura de segurança de alimentos. As figuras 1, 2, 3, 4, 5 e 6 demonstram algumas das atividades desenvolvidas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Em consonância com os projetos / atividades demostradas, na fase de verificação da metodologia do PDAC, realiza-se pesquisa mensal com os funcionários. Essa pesquisa ocorre de forma direta, onde um representante da qualidade, aborda uma amostragem de funcionários (individualmente), e realiza algumas perguntas pré-selecionadas pela equipe técnica, relacionadas com os assuntos tratados nas atividades desenvolvidas, para que possamos ter um pressuposto inicial para medir como está sendo o desenvolvimento da cultura em segurança de alimentos.
No ano de 2022, foram entrevistados 459 funcionários, distribuídos entre os setores produtivos e de apoios. O resultado dessa pesquisa foi estratificado e chegamos aos resultados apresentados abaixo na figura 7.
Já no ano de 2023 (janeiro a abril), foram entrevistados 278 funcionários, distribuídos entre os setores produtivos e de apoios, e os resultados podem ser observado na figura 8, 9, 10 e 11.
Observe que temos variações, o que reflete muito o contexto de rotatividade de funcionários, ressaltando aqui, a importância do setor de Recursos Humanos sobre o processo de contratação, integração e, principalmente o acompanhamento do desenvolvimento do novo funcionário em suas atividades, em consonância com os resultados da equipe técnica, responsável pelo desenvolvimento da cultura em segurança de alimentos.
A equipe técnica, avaliando esse indicador, determinou-se essa metodologia como forma de avaliação do desenvolvimento da cultura em segurança de alimentos, e como meta, estabelece no mínimo 80% de respostas corretas (souberam responder), abaixo de 80%, deverão ser incrementadas medidas extras (ações conforme a metodologia PDCA), para reestabelecimento da meta.
É notório, que somente essa forma de medir a cultura em segurança de alimentos de uma empresa com aproximadamente 600 funcionários, não é o suficiente, não se pode afirmar que esta empresa possui excelência e cultura de segurança de alimentos, somente com esse indicador, porém é um bom começo, para que demais oportunidades de melhorias possam ser apresentadas, implantadas, implementadas com o tempo, visando sempre, a produção de alimentos de qualidade e seguros.
CONCLUSÃO
Podemos imaginar uma pirâmide, onde temos com a base os programas de pré-requisitos (BPF – Boas Práticas de Fabricação, PSO – Procedimento Sanitário Operacional e, PPHO – Procedimento Padrão de Higiene Operacional), intermediário o programa de segurança de alimentos APPCC – Análises dos Perigos e Pontos Críticos de Controle, seguindo as normas em segurança de alimentos, tais como BRCGS FOOD, e no topo o conceito de segurança de alimentos, tendo como pressuposto que a Cultura de Segurança de Alimentos corresponde aos valores compartilhados, crenças e normas que afetam a mentalidade e o comportamento dos funcionários de uma organização de forma geral, desde o funcionário da limpeza ao CEO.
Este relato de experiência, foi um passo inicial, sabendo-se que há muito trabalho pela frente, pois mudar valores e comportamentos, não é uma tarefa fácil, porém a largada foi dada, e a partir desse pressuposto conseguiu-se obter uma visão mais abrangente para melhorias continuas, pois é de conhecimento de todos que, apesar de ainda ser pouco disseminada, a cultura em segurança de alimentos está consolidada para o futuro das organizações que trabalham no ramo alimentício, sendo um grande diferencial, principalmente falando-se de mercado, onde os consumidores estão cada dia mais exigentes, e os acordos bilaterais para exportações mais restritos.
AGRADECIMENTOS
A equipe técnica da qualidade, Wemili Graziele Santana, Magda da Silva Luciano, Gilvana Ferreira, Pedro Felício, Yllen Stocco, Viviane Jacomini, Endryo Vieira, Analice de Almeida, assim como todos os auxiliares de qualidade que atuam diariamente dentro dos setores de produção, monitorando e verificando os processos produtivos, para atendimento dos PAC’s – Procedimentos de Autocontrole e, auxiliando no desenvolvimento da cultura de segurança de alimentos, meu muito obrigada.
REFERÊNCIA
- GODOY E. V & SANTOS V. M. Um olhar sobre a cultura. Educação em Revista. Belo Horizonte: v.30; n.03; p.15-41, 2014.
- HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação e Realidade, Porto Alegre, n. 2, v. 22, p .5, 1997.
- NETO, A. V. Currículo, cultura e sociedade. Educação Unisinos, Porto Alegre, v. 8, n.º 15, p. 157-171, 2004.
- Cultura de segurança dos alimentos: qual a importância desse conceito na indústria? Disponível em: https://blogdasegurancaalimentar.volkdobrasil.com.br/cultura-de-seguranca-dos-alimentos/ acesso em: 28/05/2023.
- GFSI (Global Food Safety Initiative). A Culture of Food Safety. V1.0-4/11/18. Disponivel em: https://mygfsi.com/wp-content/uploads/2019/09/GFSI-Food-Safety-Culture-Summary.pdf acesso em: 28/05/2023.
- BRCGS (Global Standard Food Safety), edição 9 de agosto de 2022.
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