CONEXÕES ENTRE TRANSIÇÃO NUTRICIONAL E SISTEMAS AGROALIMENTARES NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
Luana Fernandes Melo1; José Marcos Froehlich2
1Nutricionista, Agroecóloga, Mestra em Agroecologia (UFPB) e Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Extensão Rural (PPGExR) – CCR – UFSM; E-mail: [email protected]
²Doutor em Ciências Sociais; Professor do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFSM; E-mail: [email protected]
Resumo: A literatura recente tem apontado para a recorrência de uma transição nutricional no Brasil atual. Mas esta transição não é homogênea nem linear, sendo permeada por disputas e conexões diversas. Assim, o objetivo deste trabalho é apresentar o contexto da transição nutricional no Brasil, destacando suas duas vertentes, uma alinhada aos sistemas agroalimentares convencionais e outra conectada aos sistemas agroalimentares sustentáveis. Nesta perspectiva, a transição nutricional pautada nos sistemas agroalimentares convencionais se ancora no cultivo de monoculturas que fornecem matérias-primas para a industrialização de produtos alimentares ultraprocessados e rações usadas na criação intensiva de animais, com base na utilização de grandes extensões de terra, uso intensivo de mecanização, água, combustíveis, fertilizantes químicos, sementes transgênicas, agrotóxicos, antibióticos, aditivos químicos e cadeias longas de comercialização e consumo. Esta abordagem acaba por promover uma má alimentação e contribui para todo um contexto de deterioração da saúde humana e ambiental. Por isso, é importante que Nutricionistas, Técnicos em Nutrição e Dietética e profissionais de áreas conexas conheçam e atuem no âmbito da transição nutricional promovida a partir dos sistemas agroalimentares sustentáveis, visto sua relevância para o fomento de uma alimentação saudável, consumo político, consciente e responsável, redução de doenças, melhorias na qualidade de vida e bem-estar da população, menores custos aos sistemas de saúde e, por fim, efetivação da saúde humana e ambiental.
Palavras–chave: sistemas agroalimentares convencionais; sistemas agroalimentares sustentáveis; transição nutricional.
INTRODUÇÃO
A transição significa a passagem do velho para o novo (MEIJERINK, 2011). Ou seja, uma transição implica em desalojar os interesses da velha ordem, sem que exista ainda uma base sólida para a nova ordem em direção à qual se quer transitar; e apesar das transições serem difíceis, demoradas e complexas, uma nova transição pode, sim, ocorrer, desde que se materialize uma agenda e um pacto de forças sociais em torno dela (FAVARETO, 2019). Neste sentido, Vasconcelos (2010) afirma que atualmente a ciência da nutrição está em trânsito visto a ocorrência das mudanças paradigmáticas na sua história no decorrer do tempo. Desta forma, a transição nutricional apresenta desfechos e determinantes sociais, econômicos e ambientais (BRASIL, 2013). Com isso, segundo o Ministério da Saúde (2020), no contexto brasileiro, a atual transição alimentar, nutricional e epidemiológica ocasiona desnutrição, excesso de peso e obesidade e, consequentemente, doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), perda de qualidade de vida e maiores custos ao sistema de saúde.
Portanto, conforme a literatura tem apontado, as mudanças nos sistemas agroalimentares acompanham o próprio curso da transição nutricional (BATISTA FILHO; RISSIN, 2003). Mas esta transição não é homogênea nem linear, sendo permeada por disputas e conexões diversas. Assim, o objetivo deste trabalho é apresentar o contexto da transição nutricional no Brasil, destacando suas duas vertentes, uma alinhada aos sistemas agroalimentares convencionais e outra conectada aos sistemas agroalimentares sustentáveis.
O CONTEXTO DA TRANSIÇÃO NUTRICIONAL NO BRASIL ATUAL
A sociedade brasileira vivenciou uma peculiar e rápida transição nutricional, a de um país que apresentava altas taxas de desnutrição, na década de 1970, a um país com metade da população adulta com excesso de peso, em 2008 (BRASIL, 2013). O Ministério da Saúde (2020) também ressalta que de um total de 12.776.938 adultos brasileiros acompanhados na Atenção Primária à Saúde, 63% apresentaram excesso de peso e 28,5% apresentaram obesidade, em 2019.
Neste âmbito, a transição nutricional pautada nos sistemas agroalimentares convencionais se permeia desde a presença de monoculturas que fornecem matérias-primas para a produção de produtos ultraprocessados ou para rações usadas na criação intensiva de animais, utilização de grandes extensões de terra, uso intenso de mecanização, alto consumo de água e de combustíveis, fertilizantes químicos, sementes transgênicas, agrotóxicos, antibióticos, aditivos químicos, cadeias longas de comercialização e consumo, até a promoção de uma má alimentação e de todo um contexto que não contribui com a saúde humana e ambiental, portanto, o resultado disso é uma homogeneização da produção, das dietas e dos hábitos alimentares e uma sindemia global, que abrange a obesidade, desnutrição e mudanças climáticas (BRASIL, 2014; THE LANCET COMMISSIONS, 2019).
Nesta perspectiva, com esse consumo emergente de ultraprocessados, principalmente pelo público de adolescentes, em dez anos (2008-2009 a 2017-2018), a frequência de consumo de feijão caiu de 72,8% para 60,0% e a de arroz de 84,0% para 76,1% (IBGE, 2020). Em dez anos também aconteceu o aumento expressivo na frequência de consumo de sanduíches, que variou de 8,3% para 13,8%; mais da metade da população ingeriu sódio acima do limite aceitável, cerca de 53,5%; ainda existe uma alta frequência de consumo de açúcar, pois para adoçar bebidas e comidas, 85,4% da população afirmou colocar açúcar e o maior consumo ficou entre os adolescentes, chegando a 93% em ambos os sexos; o consumo de frutas caiu entre os adolescentes; a ingestão de fibras dos brasileiros diminuiu, sendo assim, fica nítido o processo das transformações alimentares e a deterioração na qualidade da alimentação no Brasil ao longo do tempo (IBGE, 2020a; IBGE, 2020b).
Diante disso, na contemporaneidade há um aumento do excesso de peso, obesidade e desnutrição e, ao mesmo tempo, a presença da fome e insegurança alimentar e nutricional (IAN) ainda mais evidente por causa da ocorrência da pandemia de Covid-19, pois existem 116,8 milhões de brasileiros convivendo com algum grau de IAN e, destes, 43,4 milhões não têm alimentos em quantidade suficiente e cerca de 19 milhões de pessoas enfrentando a fome (PENSSAN, 2021).
Em contrapartida, também existe uma transição nutricional com pessoas cada vez mais conscientes da proeminência de uma alimentação saudável e em busca de sistemas agroalimentares sustentáveis e centrados na agricultura familiar, tecidos em técnicas tradicionais e eficazes de cultivo e manejo do solo, cultivo consorciado combinado à criação de animais, processamento mínimo dos alimentos e em circuitos curtos de comercialização e consumo; logo, esses sistemas colaboram mais efetivamente com a saúde humana e ambiental (BRASIL, 2014). Inclusive, Azevedo (2019) salienta que determinados consumidores estão dispostos a pagar mais pelo alimento orgânico e sustentável. Portanto, esta última transição nutricional citada, apoia e valoriza a sustentabilidade e a transição agroecológica, reconhecendo a relevância de sistemas de agricultura que incorporam princípios de base ecológica (BRASIL, 2012). Neste contexto, a Comissão EAT-Lancet (2020) ressalta a importância da transição do sistema alimentar global para dentro do espaço operacional seguro por meio de dietas saudáveis e de uma transição nutricional promovida a partir do estímulo e implementação de sistemas agroalimentares sustentáveis.
CONCLUSÕES
No atual contexto global e brasileiro, é fundamental que Nutricionistas, Técnicos em Nutrição e Dietética e profissionais de áreas conexas conheçam e atuem no âmbito da transição nutricional promovida a partir dos sistemas agroalimentares sustentáveis, visto sua relevância para o fomento de uma alimentação saudável, consumo político, consciente e responsável, redução de doenças, melhorias na qualidade de vida e bem-estar da população, menores custos aos sistemas de saúde e, por fim, efetivação realística da saúde humana e ambiental.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, E. de. Alimento orgânico é uma questão de esquerda e é inacessível para a maior parte da população. Le Monde Diplomatique Brasil. Brasil, abr. 2019. Disponível em: https://diplomatique.org.br/alimento-organico-inacessivel-para-populacao/. Acesso em: 29 maio 2021.
BATISTA FILHO, M.; RISSIN, A. A transição nutricional no Brasil:
tendências regionais e temporais. Cadernos de Saúde Pública, v. 19, n. 1, p.
181-191, 2003. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/s0102311x2003000700019.
BRASIL. Decreto Nº 7.794, DE 20 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Brasília, 2012.
BRASIL. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. 1. ed. Brasília, DF, 2013. p. 1-84.
BRASIL. Ministério da Saúde; Secretaria de atenção à saúde. Guia Alimentar para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. 156 p.
COMISSÃO EAT-LANCET. Alimento, Planeta, Saúde. 2020. Disponível em:
<https://irp-cdn.multiscreensite.com/63a687e5/files/uploaded/EAT-Lancet_Commissi
on_Summary_Report_Portugese.pdf>. Acesso em: 29 mai. 2021.
FAVARETO, A. Transição para a sustentabilidade no Brasil e o desenvolvimento territorial nos marcos da Agenda 2030 e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Parcerias Estratégicas, Brasília-DF, v. 24, n. 49, p. 51-74, 2019.
IBGE. Brasileiros com menor renda consomem mais arroz e feijão e menos industrializados. 2020. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/28648-brasileiros-com-menor-renda-consomem-mais-arroz-e-feijao-e-menos-industrializados. Acesso em: 29 maio 2021.
IBGE. Consumo de gorduras saturadas cai em dez anos, mas ingestão de açúcar e sal ainda é alta. 2020a. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/28647-consumo-de-gorduras-saturadas-cai-em-dez-anos-mas-ingestao-de-acucar-e-sal-ainda-e-alta. Acesso em: 29 maio 2021.
IBGE. POF 2017-2018: brasileiro ainda mantém dieta à base de arroz e feijão, mas consumo de frutas e legumes é abaixo do esperado. 2020b. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/28646-pof-2017-2018-brasileiro-ainda-mantem-dieta-a-base-de-arroz-e-feijao-mas-consumo-de-frutas-e-legumes-e-abaixo-do-esperado. Acesso em: 29 maio 21.
MEIJERINK, H. J. Transição: A mudança do velho para o novo – o que isso faz com você? São Paulo, 2011. Disponível em: https://febrapdp.org.br/download/publicacoes/Mudancas_e_Transicoes.pdf. Acesso em: 29 mai. 2021.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Situação alimentar e nutricional no Brasil: excesso de peso e obesidade da população adulta na atenção primária à saúde. 2020. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atlas_situacao_alimentar_nutricional_populacao_adulta.pdf. Acesso em: 29 maio 2021.
PENSSAN. Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 2021. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf. Acesso em: 29 maio 2021.
THE LANCET COMMISSIONS. The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Climate Change: The Lancet Commission report. 2019. Disponível em: https://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736(18)32822-8.pdf. Acesso em: 24 mai. 2021.
VASCONCELOS, F. A. G. A ciência da nutrição em trânsito: da nutrição e dietética à nutrigenômica. Revista de Nutrição, v. 23, n. 6, p. 935-945, 2010.