CENÁRIO E REGULAMENTAÇÃO DA PRODUÇÃO DE LEITE ORGÂNICO NO BRASIL: REVISÃO
Capítulo de livro publicado no livro do II Congresso Brasileiro de Produção Animal e Vegetal: “Produção Animal e Vegetal: Inovações e Atualidades – Vol. 2“. Para acessá-lo clique aqui.
DOI: https://doi.org/10.53934/9786585062039-9
Este trabalho foi escrito por:
Joice Fátima Moreira Silva1; Maria Isabela Moreira Silva2; Bruna Vieira Alonso3; Larissa de Souza Valladares4; Carolina Schettino Kegele4; João Batista Ribeiro5; Geraldo Márcio da Costa6
1Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Veterinárias – PPGCV – UFLA. E-mail: [email protected], 2 Graduanda em Zootecnia – IFET Sudeste de Minas Gerais. E-mail: [email protected], 3 Graduanda em Medicina Veterinária – UFJF. E-mail: [email protected], 4 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências e Tecnologia do Leite e derivados – UFJF. E-mail: [email protected]; [email protected], 5Pesquisador – Embrapa Gado de Leite. E-mail: [email protected], 6Docente do Departamento de Medicina Veterinária – UFLA. E-mail: [email protected]
Resumo: A pecuária leiteira orgânica é considerada incipiente no Brasil e sua expansão representa uma grande oportunidade para os produtores, visto o potencial de produção do país e o valor agregado ao produto, que é superior ao convencional. A demanda por informações sobre o setor dificulta a formulação de políticas públicas e a adesão de novos produtores ao sistema de produção. Na pecuária orgânica, a produção do leite deve seguir as técnicas de produção regulamentadas pela legislação vigente, instituída pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), com garantia da sua qualidade e rastreabilidade por meio da certificação. Compreender a regulamentação é um desafio para os produtores orgânicos e, por outro lado, é imprescindível direcionar o manejo e uso de insumos com base na legislação para atender ao regulamento técnico e garantir que os processos se adequem aos princípios da Agricultura Orgânica. A regulamentação nacional para produção orgânica se mantém em processo de aprimoramento contínuo por meio de atualizações. Dessa forma, é importante que os produtores se mantenham atualizados. Objetiva-se apresentar o cenário atual da produção de orgânicos no Brasil, com enfoque na pecuária leiteira orgânica e sua regulamentação, de acordo com a legislação vigente.
Palavras–chave: agricultura orgânica; certificação; legislação; pecuária orgânica
Abstract: Organic dairy farming is considered incipient in Brazil and its expansion represents a great opportunity for producers, given the country’s production potential and the added value to the product, which is superior to the conventional one. The demand for information about the sector makes it difficult to formulate public policies and the adhesion of new producers to the production system. In organic livestock, milk production must follow the production techniques regulated by current legislation, instituted by the Ministry of Agriculture, Livestock and Supply, with quality assurance and traceability through certification. Understanding the regulation is a challenge for organic producers and, on the other hand, it is essential to direct the management and use of inputs based on the legislation to comply with the technical regulation and ensure that the processes comply with the principles of Organic Agriculture. The national regulation for organic production remains in a process of continuous improvement through updates. Therefore, it is important for producers to keep up to date. The objective is to present the current scenario of organic production in Brazil, focusing on organic dairy farming and its regulation, in accordance with current legislation.
Keywords: certification; legislation; organic agriculture; organic livestock
INTRODUÇÃO
O conceito atual de agricultura orgânica se configurou com a fusão de diferentes ideias enraizadas em alguns países europeus no início do século XX (1). No entanto, o debate sobre a produção agroecológica de alimentos atinge um público mais amplo somente na década de 1970, quando se tornam mais relevantes e intensas as discussões sobre os impactos da crise ambiental com a deterioração e o esgotamento dos recursos naturais causados pelo modelo de desenvolvimento proveniente da “Revolução Verde” (2). Desde então, a produção de orgânicos no mundo têm crescido significativamente, impulsionados pela expansão do consumo de alimentos e bebidas orgânicas, principalmente nos países da Europa e da América do Norte (3).
O cenário de crescente demanda por alimentos orgânicos e o maior valor agregado a estes produtos tem encorajado os agricultores e produtores brasileiros convencionais a buscar na modalidade orgânica uma melhor viabilidade econômica para as unidades produtivas (4). Neste contexto, o Brasil é o 3° maior produtor de orgânicos da América Latina, com 1,3 milhões de hectares (ha) cultivados, e apresenta o maior mercado consumidor do continente (5).
A construção da legislação da agricultura orgânica no Brasil foi realizada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) através da Lei nº 10.831, de 23 de dezembro de 2003 (6), que dispõe sobre a agricultura orgânica, conhecida também como “Lei de Orgânicos”. Posteriormente, o decreto nº 6.323 (de 27 de dezembro de 2007) regulamentou a Lei nº 10.831, criando os mecanismos de controle para a garantia da qualidade orgânica. Essas ações foram importantes para a institucionalização da Agroecologia e da produção orgânica no Brasil (7).
No Brasil, a pecuária leiteira orgânica é considerada incipiente, apresentando pouca representatividade (0,1% da produção total) (8). Entretanto, cadeia produtiva encontra-se em fase de estruturação e expansão no País, sendo de extrema importância a coleta, sistematização e disponibilização de dados sobre a produção e o consumo de leite orgânico para a sociedade (9).
Para o leite ou o produto lácteo ser caracterizado como orgânico no Brasil, a produção deve seguir as regulamentações relacionadas à produção animal estabelecidas pela Portaria n°52 de 15 de março de 2021, que estabelece o regulamento técnico para os sistemas orgânicos de produção (10). Entretanto, produtores de leite orgânico no estado do Rio de Janeiro relataram dificuldades em entender as normas de produção, principalmente em relação à sanidade animal, e em adotar as práticas recomendadas na legislação (11), como os tratamentos não convencionais, o que dificulta a adesão e ascensão do setor.
O presente trabalho objetiva apresentar o cenário atual da produção de orgânicos no Brasil, com enfoque na pecuária leiteira orgânica e sua regulamentação, de acordo com a legislação vigente.
ASPECTOS DA PRODUÇÃO ORGÂNICA DE LEITE NO BRASIL
Histórico e panorama mundial da produção de alimentos orgânicos
A agricultura orgânica surgiu entre as décadas de 1920 e 1940, período em que o agrônomo inglês Sir Albert Howard realizou estudos sobre o papel dos microrganismos para manutenção do solo vivo através da adubação orgânica. Os primeiros experimentos foram realizados na Índia e na Europa e, posteriormente, expandidos para outros países e continentes. Surge, então, um novo modelo de agricultura difundido como um sistema alternativo de produção (12).
Nas décadas seguintes, os problemas relacionados à escassez de alimentos pós-guerra, incentivaram o aprimoramento do setor agrícola. A modernização da agricultura levou ao abandono progressivo de práticas agroecológicas milenares, como a tração animal, a compostagem e a produção artesanal (13). Este período marcou uma nova fase nos sistemas agropecuários chamada “Revolução verde”, que no Brasil se iniciou na década de 1960, através do estabelecimento dos complexos agroindustriais (14).
A produção mundial de alimentos durante a revolução verde chegou a patamares nunca antes observados. A difusão das inovações tecnológicas e industriais foram responsáveis pelos elevados ganhos na produção (15).
A revolução verde também contribuiu para a disseminação de problemas ambientais, como erosão do solo, desertificação, poluição por defensivos químicos, contaminação de mananciais e perda da biodiversidade (16). Em consequência, já na década de 1980, práticas de produção menos agressivas ao meio ambiente passaram a ser experimentadas e adotadas na agropecuária. Neste período, a agroecologia influenciou o conceito de sustentabilidade na agricultura, com solidificação da relação entre a pesquisa agroecológica e a promoção da agricultura sustentável (17).
Devido ao crescimento dos movimentos alternativos à produção convencional e popularidade dos alimentos orgânicos, foi criada em 1972 a Federação Internacional dos movimentos de agricultura orgânica, ou “International Federation of Organic Agriculture Movements” (IFOAM) (1). Esta entidade foi encarregada de adotar um posicionamento oficial sobre a produção orgânica a nível internacional.
Em 2008 a IFOAM ratificou a definição de agricultura orgânica, como sendo:
[…] “um sistema de produção que mantém a saúde dos solos, dos ecossistemas e as pessoas. Baseia-se nos processos ecológicos, na biodiversidade e nos ciclos adaptados às condições locais, substituindo a utilização de insumos com efeitos adversos. A agricultura orgânica combina a tradição, a inovação e a ciência para o benefício do meio ambiente compartilhado e promover relações justas e uma boa qualidade de vida para todos os envolvidos”.
No Brasil, o desenvolvimento da agricultura orgânica teve início na década de 1970. Neste período, os interessados pelo movimento orgânico eram ligados aos setores alternativos. Já na década de 1980 houve um acréscimo de planos ligados à agricultura familiar e a proteção do meio ambiente. De acordo com Darolt (18), foi nesta década que a agricultura orgânica começou a despontar no país.
Atualmente, o consumo de produtos orgânicos apresenta aumento vertiginoso, sendo o setor de maior crescimento dentro do mercado de alimentos (19). A IFOAM e o Instituto de Pesquisa de Agricultura Orgânica (FiBL) realizam em conjunto a sistematização de informações sobre a produção e consumo de produtos orgânicos no mundo, sendo este banco de dados atualizado anualmente a partir de informações oriundas de órgãos governamentais, certificadoras e colaboradores do setor público e privado dos respectivos países (9).
Segundo o estudo “The World of Organic Agriculture” realizado em 2020 pela IFOAM e pelo FIBL, a agricultura orgânica está presente em 190 países, com 74,9 milhões de hectares cultivados e 3,4 milhões de produtores em todo o mundo. Dentre os países mais representativos nesse mercado encontram-se os Estados Unidos atual líder com 49,5 bilhões de euros, seguido pela Alemanha (15 bilhões de euros) e França (12,7 bilhões de euros) (5).
As regiões com as maiores áreas de terras agrícolas orgânicas são a Oceania, com 35,9 milhões hectares (ha), que corresponde à metade das terras agrícolas orgânicas do mundo, e a Europa (17,1 milhões de ha). A América Latina tem 9,9 milhões de ha, seguida pela Ásia (6,1 milhões de ha), América do Norte (3,7 milhões de ha) e África (2,2 milhões de ha, 3%). Os países com mais terras agrícolas orgânicas são a Austrália (35,7 milhões de ha), a Argentina (4,4 milhões de ha) e o Uruguai (2,7 milhões de ha). O Brasil é o 12º país no ranking em território destinado à agricultura orgânica, com 1,3 milhões de hectares cultivados (5).
Panorama da agricultura orgânica no Brasil
Segundo o Cadastro Nacional dos Produtores Orgânicos – CNPO (20), cerca de 25.000 estabelecimentos fazem uso da agricultura orgânica no Brasil. Alguns estados se destacam, como: Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo. Quanto à área de produção por região, destaca-se a Sudeste, com 333 mil ha cultivados organicamente, seguida pelas regiões Norte (158 mil ha), Nordeste (118,4 mil ha), Centro-oeste (101,8 mil ha) e Sul (37,6 mil ha) (21).
O Brasil é o 3° maior produtor de orgânicos da América Latina, com 1,3 milhões de hectares (ha) cultivados (5). A produção agropecuária orgânica brasileira apresenta grande diversidade de produtos e o País apresenta o maior mercado consumidor de orgânicos da América Latina, ocupando a 16ª posição mundial de venda no varejo em 2017, com crescimento estimado de 20% em 2018 (22). Contudo, o consumo per capita de orgânicos no Brasil foi apenas €4,00 em 2018, muito abaixo do consumo em diversos países europeus e nos EUA (€124,50) (23).
No mercado externo, o Brasil se destaca como o maior produtor mundial de açúcar e álcool orgânicos, que são exportados para diversos países, e como o maior produtor de arroz orgânico da América Latina (24). Além disso, o país apresenta grande relevância na produção de café orgânico, hortaliças e frutas (5).
Leite orgânico no mundo
No segmento mundial de alimentos e bebidas orgânicos, o leite representa 20% de todas as vendas, e permanece atrás somente dos itens frutas e legumes. O mercado mundial de produtos lácteos orgânicos atingiu US$18 bilhões em 2017 e deverá chegar a US$28 bilhões até 2023, estando concentrado, principalmente, nos Estados Unidos (54%), seguido pela Alemanha (11%) e França (7%) (25).
O volume mundial de leite orgânico está em crescimento vertiginoso e, em 2017, atingiu, aproximadamente, 8,1 bilhões de litros, o que representa 1% da produção total de leite, com o maior fornecimento pelos Estados Unidos (26,1%), China (10,9%), Alemanha (10,3%), França (7,7%), Dinamarca (7,0%) e Reino Unido (5,1%). A Itália foi o país com o maior crescimento na produção de leite orgânico entre 2012 e 2017 (taxa de crescimento anual de 16,4%), impulsionado pelo aumento da demanda doméstica, seguida pela França (6,0%), Alemanha (4,9%), Estados Unidos (3,6%) e Dinamarca (3,6%) (9).
O mercado de alimentos naturais nos EUA está repleto de produtos “livres de leite”, e a pecuária tem sido alvo de críticas por diversos movimentos que questionam os grandes confinamentos e o bem-estar animal nestes sistemas (25), o que desacelerou o mercado de láticos no país. Uma estratégia para o mercado de laticínios orgânicos nos EUA para retomar o crescimento, tem sido a estruturação de sistemas de criação baseados na alimentação dos animais exclusivamente com capim, conhecidos como “100% grass-fed”, que têm sido bem aceitos pelos consumidores nos grandes varejos e nas lojas especializadas em alimentos naturais pelos benefícios para o bem-estar animal e qualidade nutricional da gordura do leite (9; 25).
Na União Europeia (UE), o leite orgânico é um dos alimentos mais importantes dentro do segmento de produtos orgânicos, correspondendo a mais de 20% de todas as vendas de orgânicos no Reino Unido e na Alemanha. Nos últimos anos, houve um aumento significativo (em torno de 10%) na produção de leite orgânico na Europa, mas os preços permaneceram estáveis, devido ao crescimento do consumo nos principais mercados domésticos da UE, bem como em outros locais. Outra razão para a estabilidade dos preços é que, atualmente, existem poucas fazendas em conversão e a demanda de leite orgânico nos próximos anos deverá ser atendida pelo aumento na produção das fazendas orgânicas já existentes. A produção de leite orgânico na Europa dobrou desde 2007, atingindo 4,4 bilhões de litros em 2019 e representando 2,8% de toda a produção europeia de leite. Os países na Europa com maior crescimento na produção de leite orgânico em 2017-2018 foram a Bélgica (16,9%), República Tcheca (9,0%), Áustria (6,0%) e Holanda (5,5%) (9; 3).
Leite orgânico no Brasil
No Brasil, a pecuária leiteira orgânica se encontra em fase de estruturação e expansão (9). Devido a isso, existem poucos trabalhos que contabilizaram a produção de leite orgânico no País. Dentre estes, Aroeira et al. (26) relataram que até 2005 a produção correspondia a 0,01% do total de leite produzido no país, enquanto que em 2010 a produção cresceu para 0,02% (6,8 milhões de litros) do total produzido (28 bilhões de litros em 2010) (27).
O lento desenvolvimento da produção de leite orgânico no Brasil foi relacionado com a falta de interesse de empresas receptoras em processar produtos lácteos orgânicos e, também, por ser ainda um sistema novo para os produtores em termos de tecnologias de produção e de legislação (4). Além disso, pode-se constatar uma carência de pesquisas científicas entorno da criação animal em sistema orgânico de produção.
Investimentos de multinacionais (Nestlé e Danone) na produção de leite orgânico no Brasil surgiu entre os anos de 2018 e 2020. Este interesse da indústria alavancou a entrada de novos produtores de leite neste setor neste período, bem como a tecnificação de propriedades já certificadas visando o aumento da produção. A Danone realizava a captação de leite orgânico de oito fornecedores em Minas Gerais e São Paulo, enquanto a Nestlé contava com cerca de quarenta produtores em seu projeto de leite orgânico, com captação diária em torno de 35 mil litros de leite nas regiões de Araraquara e Araçatuba, SP. Atualmente houve interrupção do projeto de captação de leite orgânico pela Danone e a Nestlé reduziu o número de fornecedores de leite orgânico (9).
Conhecer os sistemas de produção de leite orgânico no Brasil, bem como caracterizá-los em suas diversas esferas, tem sido o ponto de partida para a compreensão das individualidades do setor. No entanto, investigações sobre a identidade do leite ou produto lácteo orgânico em comparação ao convencional são ainda incipientes no país. Silva (11), ao estudar a qualidade do leite orgânico no Estado do Rio Janeiro, observou que 43% das propriedades avaliadas apresentaram resultados para contagem de células somáticas (CCS) e/ou contagem padrão em placas (CPP) superiores aos limites instituídos nas IN 76 e 77/2018, que regulamenta a identidade e qualidade do leite cru refrigerado. Por outro lado, a autora constatou que todas as amostras de leite orgânico apresentaram conformidade quanto à composição química (gordura, proteína e lactose) e ausência de resíduos antimicrobianos.
Ainda que a representatividade da produção orgânica de leite em relação a produção total de leite convencional seja baixa, o Brasil apresenta potencial de expansão da produção de leite orgânico, pois predominam no País os sistemas de produção extensivos, a pasto, com a adoção de raças adaptadas ao clima tropical, sendo estes fatores priorizados na regulamentação para sistemas orgânicos de produção animal. Contudo, a lacuna de informações sobre a produção e comercialização prejudica desenvolvimento de pesquisas e políticas públicas para o setor (9).
Legislação para a agricultura orgânica no Brasil e controle de garantia
Na década de 1990, o aumento da produção e da comercialização de produtos orgânicos levou o governo brasileiro a regulamentar o setor para proteger os consumidores (28). Através da Portaria nº 178 de agosto de 1994, o MAPA criou uma comissão especial para propor normas de certificação de produtos orgânicos. Contudo, a regulamentação oficial ocorreu somente em maio de 1999, com a publicação da Instrução Normativa (IN) nº 007 do MAPA (29).
Os instrumentos regulatórios para a produção orgânica brasileira basearam-se em normas nacionais e internacionais já existentes (30). Dentre estas, destacam-se as diretrizes do Codex Alimentarius, que teve sua comissão instituída pela Food and Agriculture Organization (FAO) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1963.
Embora a regulamentação já estivesse estabelecida, a formalização das normas de produção orgânica ocorreu somente em 23 de dezembro de 2003 com a aprovação da Lei Federal nº 10.831, a qual contempla normas, tipificação, processamento, envase, distribuição, identificação e certificação dos produtos orgânicos (6; 28).
Conforme exposto no quadro 1, que representa o histórico da normatização da agricultura orgânica no Brasil, a legislação define as práticas empregadas na produção de alimentos orgânicos de acordo com requisitos que devem ser aplicáveis pelos produtores, processadores e comerciantes. O produtor que pretenda comercializar seus produtos como orgânicos deve cumprir com pelo menos uma norma de caráter orgânico e tem que ser certificado com esta norma.
Os mecanismos de garantia da produção orgânica são realizados através das certificações, concessão de selos (Figura 1) e dos conceitos de controle de qualidade e relação de confiança entre produtor e consumidor na comercialização. Esses mecanismos de garantia seguem a IN nº 19, de 28 de maio de 2009 (31). Existem três mecanismos de certificação implementados no Brasil para que os produtores possam ser reconhecidos como produtores orgânicos: certificação por auditoria, sistema participativo de garantia e controle social na venda direta (quadro 2).
Normas para a produção orgânica de leite
Segundo a Lei Federal nº 10.831, de 23 de dezembro de 2003, no seu artigo primeiro (6):
[…] “considera-se sistema orgânico de produção agropecuária todo aquele em que se adotam técnicas específicas, mediante a otimização do uso dos recursos naturais e socioeconômicos disponíveis e o respeito à integridade cultural das comunidades rurais, tendo por objetivo a sustentabilidade econômica e ecológica, a maximização dos benefícios sociais, a minimização da dependência de energia não renovável, empregando, sempre que possível, métodos culturais, biológicos e mecânicos, em contraposição ao uso de materiais sintéticos, a eliminação do uso de organismos geneticamente modificados e radiações ionizantes, em qualquer fase do processo de produção, processa- mento, armazenamento, distribuição e comercialização, e a proteção do meio ambiente”.
O leite orgânico é definido como um alimento produzido por vacas, búfalas, cabras ou ovelhas em uma unidade orgânica de produção, a qual é gerida de forma sistêmica como um Organismo Agrícola, com garantia da sua qualidade e rastreabilidade por meio de certificação de acordo com a legislação vigente, comprovada pelo selo “Produto Orgânico Brasil”, do Sistema Brasileiro de Avaliação de Conformidade Orgânica (SisOrg) (32).
As normas para a produção de leite orgânico foram instituídas pelo regulamento técnico de produção animal da IN nº 46/2011 (33), que foi atualizada e substituída pela Portaria nº 52, de 23 de março de 2021 (10). Conforme a legislação, para a produção de bovinos leiteiros, o período de conversão é de no mínimo seis meses em sistema de manejo orgânico. Porém, este período somente terá início após o completo período de conversão da área, que apresenta duração mínima de 12 meses de manejo orgânico.
Todos os produtores orgânicos devem elaborar seu Plano de Manejo Orgânico, com descrição detalhada dos insumos e práticas adotados em sua unidade de produção, que deverão se adequar ao regulamento técnico estabelecido pelo Mapa por meio da Portaria N° 52 (10). O Plano de Manejo Orgânico precisa ser aprovado pelo organismo certificador, que avalia os potenciais riscos de comprometimento do sistema orgânico por meio de: questionário para coleta de dados, vistorias nas unidades que fornecem o insumo para a unidade produtiva, levantamentos bibliográficos, análises laboratoriais, documentos assinados por fornecedores, ficha técnica dos produtos e outros considerados necessários (33).
O princípio da prevenção mostra que a agricultura orgânica deve ser gerida de uma forma preventiva e responsável para proteger a saúde e o bem-estar das gerações atuais e futuras, além do meio ambiente (34). Dessa forma, na produção orgânica de leite recomenda-se que a alimentação animal seja equilibrada para suprir todas as necessidades dos animais. Contudo, os suplementos devem ser isentos de antibióticos, hormônios e vermífugos, sendo proibidos aditivos promotores de crescimento, estimulante de apetite e ureia, bem como suplementos ou alimentos derivados ou obtidos de organismos geneticamente modificados. A produção de alimentos volumosos deve ser feita por meio de pastagens, capineiras, silagem e feno. Recomenda-se o consórcio de gramíneas e leguminosas e a implantação de sistemas agroflorestais. Neste aspecto, ressalta-se que 85% da matéria seca consumida por ruminantes deve ter origem orgânica, e que a maior parte da alimentação deve ser proveniente da própria unidade de produção (10).
No manejo sanitário do rebanho, as práticas preventivas devem ser o foco principal. Entretanto, caso se faça necessário, propõem-se o uso de fitoterápicos e da homeopatia. Todas as vacinas estabelecidas por lei são obrigatórias, e para as doenças mais comuns de cada região são recomendadas as respectivas vacinações e exames. De forma preventiva para ecto e endoparasitos, é recomendada a rotação de pastagens e o uso de compostos de ervas medicinais juntos a ração. Como prevenção a bernes e carrapatos, é permitido o uso do controle biológico e a manutenção das esterqueiras cobertas e protegidas de moscas (10).
A Portaria nº 52 apresenta também a relação de substâncias que são permitidas na prevenção e tratamento de enfermidades dos animais em produção orgânica. De acordo com o artigo 63 da referida norma, quando os animais estão acometidos por doenças ou ferimentos e, por isso, estejam sofrendo ou em risco de morte, excepcionalmente poderão ser utilizados produtos alopáticos. Contudo, deve ser respeitado o período de carência, que deverá ser o dobro do estipulado na bula do produto (mínimo 96 horas), e o animal deve ser isolado (10).
Quanto ao padrão racial, sugere-se o uso de genótipos adaptados às condições climáticas e ao tipo de manejo empregado, como os zebuínos leiteiros e seus cruzamentos. Estes grupos apresentam menores exigências nutricionais, são mais rústicos e capazes de produzir de forma satisfatória em condições naturais de criação, dispensando a utilização preventiva de antibióticos, promotores de crescimento e hormônios, que não são permitidos. No manejo reprodutivo permite-se apenas a monta natural e a inseminação artificial. Não são permitidos protocolos que utilizem a manipulação hormonal (10).
As instalações devem dispor de condições de temperatura, umidade e ventilação que garantam o bem-estar animal. Deve ser facilitado o acesso à água, alimentos e pastagens. Ademais, as instalações devem ter espaço adequado à movimentação, o número de animais por área não deve afetar aos padrões de comportamento, o contato social, que permitam aos animais assumirem seus movimentos naturais, assim como o confinamento total de animais adultos e o isolamento e reclusão de animais jovens não deve ser utilizado (10).
CONCLUSÕES
A pecuária leiteira orgânica no Brasil encontra-se em fase de estruturação e expansão, o que representa uma oportunidade para os produtores, visto que a remuneração do leite orgânico é superior ao convencional. No entanto, a cadeia apresenta desafios que dificultam a maior adesão e conversão de produtores, como a adequação à legislação.
A regulamentação da agricultura orgânica no Brasil passa por uma série de normas e portarias em processo contínuo de aprimoramento ao longo do tempo, fundamentada nos princípios da saúde, ecologia, equidade e prevenção. Para os sistemas de produção de leite orgânico, a Portaria Nº 52, de 15 de março de 2021 estabelece o regulamento e as listas de substâncias e práticas permitidas para uso nas fazendas.
Os produtores devem se adequar à legislação, devendo ajustar os processos de produção, armazenamento, beneficiamento, processamento e comercialização de acordo com a normativa e com base na orientação dos organismos de avaliação de conformidade, para assim garantir a qualidade do produto ao consumidor.
AGRADECIMENTOS
FAPEMIG (bolsa de doutorado) e Embrapa (Projeto 10.18.03.061.00.00).
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