MEL E FRUTAS ALÉM DO ÓBVIO: PRODUÇÃO DE HIDRÓMEIS COMO ATIVIDADE ECONÔMICA NO NORDESTE BRASILEIRO
Capítulo de livro publicado no livro PROCESSAMENTO DE ALIMENTOS: PESQUISAS E INOVAÇÕES PARA NOVOS PRODUTOS. Para acessa-lo clique aqui.
DOI: https://doi.org/10.53934/202311-10
Este trabalho foi escrito por:
1Embrapa Tabuleiros Costeiros
Autor correspondente: [email protected]
1 Introdução
O mel é um produto natural utilizado desde os primórdios da humanidade, tendo adquirido popularidade entre os Egípcios, Árabes, Gregos e outras civilizações. Seu consumo vai além do uso na dieta humana, sendo aplicado também como medicamento, devido às suas propriedades antissépticas; como conservante de frutas e grãos; além de ser utilizado pela indústria de cosméticos (ARAÚJO, 2021) Em 2021, o Brasil produziu 55,8 mil toneladas de mel apícola (BRASIL, 2022), Contudo, a maior parte de todo mel produzido no país é destinada ao mercado externo (FAO, 2020). O Nordeste ocupa o segundo lugar na produção brasileira de mel apícola, tendo produzido 20,2 mil toneladas em 2021 (BRASIL, 2022).
A diversidade de climas e microclimas faz com que o Brasil seja considerado o país perfeito para a produção de frutas, sendo o terceiro maior produtor do mundo, com 40 milhões de toneladas de frutas produzidas em 2020, ficando atrás apenas da China e da Índia. O Nordeste do Brasil detém as maiores áreas cultivadas com fruticultura, no país (FAO,2020, DE PAULA 2012). Porém, cerca de 30 a 40% dos frutos produzidos nacionalmente são desperdiçados. Em razão disso, é importante ter alternativas para evitar desperdícios e aumentar o rendimento financeiro dos agricultores (DE PAULA, 2012).
Dentre as opções para viabilizar e diversificar as atividades do setor agropecuário, principalmente na agricultura familiar, uma ainda não explorada no Nordeste brasileiro, é a produção de hidromel ou “vinho de mel”, como também é chamado. Trata-se de uma bebida milenar, tradicionalmente consumida em países da Europa, Ásia e África (NAKADA, 2020), obtida por meio da fermentação alcoólica do mel diluído em água e enriquecido com sais minerais, devido à ação de leveduras do gênero Saccharomyces,podendo ser elaborada de maneira artesanal e sem a necessidade de equipamentos sofisticados (BRASIL,2009; FEY et. al.,2020; MORAES et. al., 2018). Porém, no Brasil, essa bebida é pouco conhecida e as pequenas produções que existem, concentram-se no Sul e Sudeste do país.(NAKADA, 2020)
De acordo com o BEER JUDCE CERTIFICATION PROGRAM (BJCP, 2015), o qual possui uma edição com diretrizes para a produção de hidroméis, existem várias categorias da bebida, produzidas e consumidas no mundo, variando de acordo com os aditivos incorporados para realçar o sabor ou até mesmo para a obtenção de um produto diferenciado e único, indo desde o “Tradicional”, o qual apresenta sabor próprio de mel, sem nenhum aditivo; “Metheglin”, o qual é adicionado de ervas e especiarias; “Cyser”, hidromel adicionado de maçãs ou suco da fruta; “Pyment”, adicionado de uva ou suco de uva; “Melomel”, no qual são adicionadas frutas, exceto uva e maçã, com diversas possibilidades de produto; até o “Rhodomel”, o qual é aromatizado com pétalas de rosas.
A incorporação de frutos tropicais na produção de hidromel, pode incrementar características sensoriais, além de transferir compostos fenólicos e aromáticos da fruta para a bebida (AMORIM et. al.,2018; SAVI et. al., 2021), e ainda aprimorar o processo fermentativo, fornecendo nutrientes para as leveduras.10 Além disso, bebidas fermentadas, tendo frutas (ou partes delas) como adjuntas, têm um valor agregado bem maior para o produtor do que a fruta comercializada na sua forma natural (DE PAULA, 2012). A acerola (Malpighia emarginata Sessé & Moc. ex. DC.), por exemplo, é uma fruta produzida em larga escala no Nordeste brasileiro, sendo rica em vitamina C e outros compostos bioativos, como a rutina (DALA-PAULA, 2019).
Existem no mercado nacional, hidroméis elaborados com a adição de frutas diversas, pertencendo a bebida às categorias “Melomel” ou “Pyment”, a depender da fruta utilizada, como os produzidos pela Norseman hidromel, localizada em São Leopoldo-RS, a qual possui em seu portfólio, além do hidromel tradicional, outros estilos como o melomel de laranja, com valores a partir de R$ 60, por garrafa com 750mL (NOSERMAN HIDROMEL,2023). Já a Be.Hive, fundada em 2017, empresa localizada no Rio de Janeiro, produz hidroméis que custam R$ 100, por garrafa. Entre os estilos, também existem aqueles produzidos com frutas tropicais, como jabuticaba (BE-HIVE,2023). A Companhia dos Fermentados, empresa paulista, produz e comercializa o hidromel com framboesas orgânicas, produzidas na Serra da Mantiqueira/SP, ao valor de R$ 139 a garrafa com 700mL, mostrando o potencial comercial dessas bebidas (COMPANHIA DOS FERMENTADOS, 2023).
Visto que, apesar da diversidade de matérias primas disponíveis, há poucos registros de produção comercial de hidromel no Nordeste brasileiro, esse estudo teve como objetivo apresentar a produção de hidroméis nos estilos tradicional e melomel de acerola, como uma atividade econômica viável para agregar valor aos méis e frutas regionais. A produção dos hidroméis foi executada com o uso de utensílios e instrumentos de medição simples, sendo a maioria deles encontrados em mercados especializados em insumos para a produção de cervejas artesanais (brew shop).
2 Material e Métodos
2.1 Produção dos hidroméis
Foram produzidos dois estilos de hidromel: tradicional e melomel, sendo o primeiro produzido com os ingredientes básicos (mel apícola, água e levedura) e no segundo, foram adicionados frutos de acerola, totalizando dois tratamentos. O mel apícola (77,5°Brix) e os frutos maduros de acerola, utilizados no presente estudo, foram adquiridos de pequenos apicultores e produtores dos municípios de Ribeira do Pombal-BA (coordenadas 10°50’33”S; 38°31’57”O) e Nossa Senhora do Socorro-SE (coordenadas 10°51’18” S; 37°07’33”O), respectivamente.
O mosto (2 L), de cada estilo de hidromel, foi formulado conforme Fey e et. al., 2020, com algumas variações na metodologia, a fim de avaliar as possibilidades de produção. Para a elaboração do hidromel tradicional, mosto foi constituído de mel diluído em água até atingir 25 °Brix, densidade de 1.102 g/L e pH de 4,6; 0,05% (m/v) de nutrientes para leveduras (difosfato de amônio, sulfato de amônia e vitamina B1), da marca Coccitech® Start Plus (Coccitech SRL, Treviso, Itália) e 1,1 g/L de levedura Saccharomyces cerevisiae liofilizada Lalvin® K1-V116 (Lallemand, Montreal-Quebec, Canadá). A fermentação desse tratamento ocorreu em balde de polipropileno (Figura 1), a 29,3°C, durante 192 h. Para a produção do melomel de acerola, o mel foi diluído em água até atingir 21,5 °Brix, densidade de 1.089 g/L e pH de 4,3; 0,03% (m/v) de nutrientes para leveduras (difosfato de amônio, sulfato de amônia e vitamina B1), da marca Fermocel® (AEB Bioquímica Latino Americana S.A, São José dos Pinhais, PR, Brasil); 1,0 g/L de levedura Saccharomyces cerevisiae liofilizada Montrachet Red Star® (Fermentis, Marcq-en-Barœul, França), e 10% (m/v) de polpa de acerola. A fermentação também ocorreu em balde de polipropileno a 29,5°C, durante 144 h.
Terminadas as fermentações, os hidroméis foram transferidos para outro balde, tendo-se o cuidado de separar o fermentado dos resíduos sólidos depositados no fundo de cada fermentador. Em seguida, os baldes com cada estilo de hidromel foram mantidos sob refrigeração (10°C), para maturação, durante 30 dias. Logo após, os hidroméis foram envasados em garrafas de vidro verde, do tipo “Bordalesa”, e mantidos a 10°C até o momento das análises (FEY et. al., 2020; MORAES, 2018)
2.2 Análises físico-químicas das bebidas
As bebidas foram analisadas, em triplicata, para sólidos solúveis (°Brix), por leitura direta em refratômetro analógico, a 20°C; densidade (g/L), por meio de leitura direta com densímetro de bulbo, a 20°C; pH, por leitura direta com pHmetro portátil, conforme os métodos da International Organisation of Vine and Wine (OIV, 2021) ; e teor alcoólico, estimado por meio das equações de Hall, as quais consideram a diferença entre medidas sucessivas de densidade específica para calcular o conteúdo de álcool (HALL, 1995)
2.3 Custos de produção e investimento inicial
Os custos de produção foram calculados levando-se em consideração a aquisição das matérias–primas e insumos para o envase das bebidas. Também foi realizado orçamento para investimento mínimo necessário, que o produtor deve realizar, para a compra de utensílios e instrumentos básicos de medição, a fim de iniciar uma produção artesanal.
3 Resultados e Discussão
3.1 Caracterização físico-química dos hidroméis
Os valores obtidos com as análises do hidromel tradicional e do melomel de acerola estão apresentados na Tabela 1.
Tabela no livro
Os valores de teor alcoólico apresentados pelas duas categorias de hidromel produzidas, estão de acordo com a Legislação brasileira, a qual estabelece teor alcoólico entre 4% e 14% para hidroméis (BRASIL, 2009). Os demais parâmetros não são padronizados pela referida legislação, no entanto, seu acompanhamento é imprescindível para revelar o andamento da fermentação, além de características sensoriais da bebida (MORAES, 2018; BJCP,2015).
Ao comparar esses resultados com os disponíveis na literatura, observou-se a produção de hidromel tradicional de Fey e et. al.,2020, com valores de teor alcoólico e densidade de 12,76% (v/v) e 1.020 g/L, respectivamente. No entanto, a fermentação executada por esses autores durou 480h, sendo 2,5 vezes maior do que o tempo aplicado na atual pesquisa (192h) para esse estilo de hidromel.
Nos estudos de Amorim et. al., 2018, foram elaborados hidromel tradicional e meloméis de acerola com diferentes concentrações de polpa da fruta (10%, 15%, 25% e 30%), obtendo teores alcoólicos de 14,7%(v/v) para o estilo tradicional e de 15,2% a 16,6% (v/v) para os meloméis, após 288h de fermentação, sendo esse o dobro do tempo adotado no atual estudo (144h), para a produção do melomel de acerola. Enquanto, na formulação de hidromel tradicional e meloméis com diferentes concentrações de suco de amora (5%, 10%, e 20% v/v), elaboradas por Savić e et. al., 2021, foram observados resultados inferiores ao do atual estudo para teor alcoólico (6,93% – 7,98% v/v) e pH (3,07-3,30), em 240h de fermentação.
3.2. Custos de produção
As Tabelas 2 e 3 mostram os custos de produção dos hidroméis, por garrafa com 750mL (Figura 2B) para cada estilo de hidromel produzido (tradicional e melomel, respectivamente), com base apenas nos gastos com os ingredientes e a embalagem.
Tabelas no livro
O melomel de acerola apresentou um custo inferior ao do hidromel tradicional, por usar uma proporção menor de mel, levedura e ativante de fermentação; além da diferença nos preços desses dois últimos insumos, utilizados nas produções.
Deve-se levar em consideração que os valores apresentados se referem à produção artesanal (ou caseira) e não comportam as despesas com mão de obra, energia elétrica, fermentador, instrumentos de medição, equipamentos analíticos, e outros utensílios necessários para o início da produção. Vale ressaltar que os custos para uma produção industrial são maiores.
Por isso, Nakada et. al., 2020, avaliando a viabilidade de implantação de uma indústria de hidromel em território brasileiro, apresentaram os gastos de produção, considerando as despesas fixas (água, mão de obra, energia elétrica, material de expediente, entre outros) e as despesas variáveis (matéria-prima e insumos para envase), as quais podem mudar conforme a quantidade produzida. De acordo com os autores, o custo total para produzir hidromel tradicional ficaria em torno de R$ 31,42, por litro.
Considerando que o valor mínimo, no mercado brasileiro, de uma garrafa de hidromel com 750mL, é de R$ 60 (NOSERMAN HIDROMEL,2023), os custos de produção apresentados neste estudo e as despesas relatadas na literatura (NAKADA et. al., 2020) mostram que a produção comercial de hidromel pode ser rentável, permitindo que pequenos produtores e apicultores possam expandir e diversificar a oferta de produtos provenientes do mel e de frutas. É importante destacar que, para comercialização, os hidroméis têm que ser registrados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA)
O produtor que desejar iniciar uma fabricação artesanal de hidromel deve investir, inicialmente, na compra de utensílios e instrumentos para a avaliação de parâmetros básicos das bebidas, sendo esses materiais apresentados na Figura 3 e as médias de preços deles, mostradas na Tabela 4.
4 Conclusões
Os valores de teor alcoólico do hidromel tradicional, 14,30 ± 0,09 % v/v e do melomel de acerola, 12,36 ± 0,06 %v/v estão de acordo com a Legislação brasileira, a qual estabelece teor alcoólico entre 4% e 14% para hidroméis. Diante dos fatos apresentados e dos resultados obtidos, observa-se que a produção de hidromel, seja artesanalmente ou em escala industrial, é um nicho de mercado a ser explorado em território brasileiro, principalmente na Região Nordeste, a qual é tão rica em diversidade de méis e frutas. Tal prática permite agregar valor a essas matérias-primas locais e de fácil aquisição, expandindo as possibilidades de atividade econômica e gerando lucro, além de reduzir o prejuízo para o produtor por perda de frutas no período de pós-colheita.
Referências
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